quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Escrevendo sobre/sob turbulência(s)

Na minha infanto-adolescência, como é de praxe nessa fase da vida, eu pensava que era capaz de realizar algumas “proezas”. Não citarei todas, obviamente, mas uma delas era tentar escrever dentro do ônibus, voltando da escola. A cada lombada eu fazia uma pausa, mas não adiantava muita coisa – a estrada, por (ainda) ser de paralelepípedo, me impedia de escrever legivelmente, e o que sobrava eram somente garranchos medonhos. Por perceber que não conseguiria escrever, eu me contentava apenas em ler, o que também era quase impossível de se realizar, haja vista a irregularidade da pista. As turbulências do caminho me impossibilitavam de tais coisas.

Alguns anos se passaram e aqui estou eu, com meu lap-top, sentado à mesa do meu quarto, encontrando as mesmas dificuldades. Obviamente, não me refiro a ônibus ou a paralelepípedos, e sim, à tarefa de escrever, que continua árdua, embora não pelos mesmos motivos de antes, exatamente. Hoje, minhas “turbulências” são outras, e variam desde a falta de ideias (“insigths”) à falta de tempo. Quando as ideias fluem, nem sempre tenho tempo para transcrevê-las; o contrário também é verdade. O que me resta, então, é sobreviver das poucas anotações que consigo fazer quando algo me salta à mente, para escrever numa oportunidade próxima. Não são muitas as vezes em que se encontra uma situação ideal, que combine tempo disponível e ideias abundantes, aliadas a um lugar bem tranqüilo onde se possa escrever com razoável paz. Quando não dispomos de nada disso, a porta para o desespero se abre (principalmente para um blogueiro como eu, que precisa manter seu blog “atualizado”).

Minhas elucubrações sobre esse assunto me fizeram viajar um pouco pela história do povo de Deus. Fiquei a pensar em Moisés, escrevendo o Pentateuco. Ora, ele não estava escrevendo em seu escritório particular, com ar-condicionado, lap-top e cafezinho ao lado. Ele estava em pleno deserto com os israelitas! O que dizer, então, de Davi? Boa parte dos salmos que ele escreveu foi em circunstâncias extremamente adversas (e.g. Sl 23; 51 etc.). Talvez o melhor exemplo seja o do apóstolo Paulo. Ele mesmo nos diz, por exemplo, que escreveu sua segunda carta aos coríntios “no meio de muitos sofrimentos em angústias de coração” (2Co 2.4). Os “sofrimentos” que o apóstolo tem em mente são, certamente, físicos (cf. 2Co 1.8; 11.23-27), ao passo que as “angústias de coração” tem a ver com a sua extrema “preocupação com todas as igrejas” (2Co 11.28) – especialmente a de Corinto. Há uma grande probabilidade de que a sua primeira carta aos coríntios também tenha sido escrita em circunstâncias semelhantes. Paulo estava em Éfeso quando a escreveu. Ele nos diz, por exemplo, que lutou com feras[1] naquela cidade (1Co 15.32) e que, a despeito da “porta grande e oportuna” que se lhe tinha aberto para o trabalho, “muitos adversários” se insurgiram contra ele (1Co 16.8,9). Escrevendo pela segunda vez ao jovem pastor Timóteo, o já debilitado Paulo prevê seu próprio martírio (2Tm 4.6-8). Aqui, sugere-se que ele tenha escrito em precárias condições de saúde. Pesa também o fato de que pelo menos um terço das suas cartas (Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemon)[2] foi escrito da prisão. Há outros também, como o apóstolo João, por exemplo, que escreveu o último livro da Bíblia quando estava exilado na ilha de Patmos, “por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1.9).

O período da Reforma também tem algo a nos dizer sobre isso, especialmente em se tratando das suas figuras mais proeminentes. Um bom exemplo foi Lutero. Não era raro encontrá-lo jogando frascos de tinta de escrever ao ar, pensando estar atingindo o diabo! Seus tormentos não o deixavam trabalhar em paz. Mas foi numa dessas situações que ele escreveu um dos hinos cristãos mais famosos de todos os tempos, Castelo Forte, quando fugia da perseguição de Carlos V, em 1529. Além disso, traduziu todo o Novo Testamento diretamente do grego para o alemão em menos de um ano, tendo completado a tradução de toda a Bíblia em 1534. “Não só foi a primeira Bíblia do povo alemão em sua própria língua como tornou a forma padrão da língua germânica”[3]. Tudo isso Lutero realizou sob fortes ameaças dos seus inimigos, e não numa “torre de marfim” inatingível.

O caso de João Calvino é ainda mais interessante. Depois da sua “repentina” conversão, o jovem reformador decidira se dedicar inteira e exclusivamente à reflexão e ao estudo das Escrituras. Resoluto disso, “com a intenção de estudar e escrever em reclusão e tranqüilidade”[4], ele partiu para o sul da Alemanha. Quando estava em Estrasburgo, porém, sua rota teve que ser alterada (uma guerra entre Carlos V e Francis I fez com que as tropas bloqueassem a estrada para Estrasburgo), e Calvino teve que desviar por Genebra. Lá ele encontrou William Farel, líder protestante naquela cidade, que insistiu para que Calvino permanecesse lá. Vou deixar para que o próprio Calvino nos conte de como Farel o convenceu a ficar em Genebra:

Farel, que inflamava-se com um zelo extraordinário pelo avanço do evangelho, imediatamente empregou todas as suas forças para me convencer a ficar naquele lugar. E depois que descobriu que o desejo do meu coração era dedicar-me aos estudos particulares, razão pela qual queria me manter livre de outras ocupações, e percebendo que nada conseguiria com súplicas, ele prosseguiu falando de uma maldição que Deus lançaria sobre o meu isolamento e a tranqüilidade dos estudos que eu buscava, caso me recusasse a prestar auxílio quando a necessidade era tão urgente. Fiquei tão assustado com esta maldição que desisti da viagem que tencionava fazer[5].


Certamente, Calvino realizou seu sonho, a saber, o de se dedicar à reflexão e ao estudo das Escrituras. Foi em Genebra que ele editou e publicou sua obra-prima: As Institutas da Religião Cristã. Foi lá, também, que ele começou a comentar os livros das Escrituras, começando por Romanos. Dos sessenta e seis livros da Bíblia, Calvino comentou quarenta e oito, sendo vinte e quatro do Antigo Testamento vinte e quatro do Novo Testamento. Mas não pensemos que ele encontrou em Genebra a “tranqüilidade” que ele tanto desejava. Foi em meio a inúmeras tribulações que o reformador lapidou toda a teologia que ele nos legou. Além das perseguições, que não foram poucas, havias os problemas familiares. Morreram-lhe três filhos (um aborto, um ao nascer, e outro com apenas duas semanas de vida). Logo em seguida, em 1549, foi a vez de sua esposa, Idelette Stordeur, o deixar. Ela morreu de tuberculose. Tudo isso veio como uma faca afiada no peito do reformador. Como se não bastasse, Calvino ainda tinha que conviver com seus próprios problemas de saúde, que eram seriíssimos, e que muitas vezes o impediram de exercer seu ministério de forma mais intensa. Ainda assim, ele arrumou tempo e disposição para pregar cerca de quatro mil sermões durante toda a sua breve vida, deixando-nos toda uma herança gigantesca. Ele morreu aos 54 anos, em 27 de maio de 1564, enquanto comentava o livro do profeta Ezequiel.

Mas não é preciso ir muito longe em nossa pesquisa, não. Bem pertinho de nós, aqui no Brasil, fiquei muito feliz quando li os agradecimentos do Dr. Augustus Nicodemus em seu livro A Bíblia e seus intérpretes. Ele dedica sua última nota de agradecimento à sua esposa Minka. Ele diz que

Sem a sua compreensão e paciência eu não teria como terminar esta pesquisa, que já passa dos dez anos. Ao dedicar-se ainda mais a Hendrika, Samuel, David e Anna, nossos filhos, ela se deu por mim, comprando-me tempo precioso para terminar esta obra[6].


O que pouca gente percebe é que Augustus Nicodemus não escreveu esse livro da noite para o dia – foram mais de dez anos de pesquisa! E não somente isso, mas ele teve que abdicar de parte da sua dedicação aos próprios filhos, para que essa preciosa pérola da literatura evangélica nacional chegasse a nossas mãos. Isso sem contar com os possíveis imprevistos, intempéries, problemas de saúde etc. Acredito que ninguém, quando vai comprar uma joia, fica se perguntando a quantos graus Celsius o ouro bruto teve que ser submetido para que se chegasse ao produto final. Estamos interessados somente na obra-prima, e não nos processos que levaram a ela. Contudo, essa visão limitada, utilitária e imediatista faz com que não atribuamos o valor devido às coisas.

Muitos outros nomes ainda poderiam ser citados, mas preferi restringir esse meu modesto tour a esses poucos exemplos. Não consigo me imaginar na pele Calvino, por exemplo, tanto pela literatura que produziu, quanto pelas circunstâncias em que isso se deu, e ainda mais pela grandeza da sua teologia. Se os simples afazeres diários me fazem perder o prumo (e o texto), o que diria eu das perseguições, doenças e perdas diárias? Entretanto, entendo que cada época encerra as suas próprias dificuldades. Moisés conviveu com as dele, e Lutero também. Cada um na sua. É preciso que nós, cidadãos/escritores/(blogueiros!) do século XXI, saibamos conviver com as nossas “turbulências” também, “remindo o tempo, porque os dias são maus” (Ef 5.16).


“Aproveitai as oportunidades” (Cl 4.5)!

Soli Deo Gloria!

_______________________________________
[1]Não devemos entender “feras” no seu sentido literal, uma vez que a expressão que a antecede, “como homem”, significa “falar figuradamente”. Provavelmente Paulo tem em mente os seus perseguidores, especialmente os seus patrícios judeus.
[2]Ainda se tem dúvidas sobre outras, como II Timóteo, por exemplo.
[3] Cairns, Earle E. O Cristianismo através dos séculos – uma história da igreja cristã. Editora Vida Nova, São Paulo – SP, 1995. 2ª Ed. Pág. 238.
[4]Em Lawson, Steven J. A arte expositiva de Calvino. Editora Fiel, São José dos Campos – SP, 2008. Pág. 23. Itálico meu.
[5]Idem.
[6]Lopes, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. Cultura Cristã, São Paulo – SP, 2ª Ed. 2007. Pág. 9.

Share |

4 comentários:

Alberto M. de Oliveira (Betochurch) disse...

Olá Leonardo, tudo bem?
Parabéns pelo seu blog, adorei...
Me tornei seguidor e coloquei um link nos favoritos do meu.
Ali´s, quando puder me faz uma visita, ficarei honrado: http://ecclesiareformanda.blogspot.com/

Um abração, e que o Senhor continue lhe abençoando.
Alberto M de Oliveira

História e Debate disse...

É verdade Bruno, escrever não é tarefa fácil, mas é prazerosa e necessária. E se torna mais difícil ainda quando você tem inúmeras atividades: trabalho, ministério,família,estudos,etc. Como cumprir com tudo isso fielmente? Não há outro caminho: só pela Graça de Deus. É exatamente nesse momento de um profundo sentimento de "incapacidade", que pudemos sentir bem perto de nós, a presença de Deus. Mais meu caro irmão, permaneça firme, crendo que, "Aquele que boa obra em vós a de completá-la". Um abraço. Lembrança a esposa.
Rev. José Roberto

Leonardo Bruno Galdino disse...

Caro Alberto,

Obrigado por sua visita. Estarei visitando o seu blog, sim.

Um abraço!

Leonardo Bruno Galdino disse...

Caro Pr José Roberto,

De fato, somente pela graça de Deus é que podemos continuar escrevendo para a Sua Honra e Glória. Quando leio a história dos grandes homens de Deus fico mais encorajado ainda a continuar.

Lembranças à sua família também.

Um forte abraço!

Postar um comentário

Muito obrigado por comentar as postagens. Suas opiniões, observações e críticas em muito nos ajuda a buscar a qualidade teológica naquilo que escrevemos. Se for de opinião contrária, não ofenda - exponha sua perspectiva educadamente. Comentários anônimos não assinados ou desrespeitosos não serão publicados. Todo debate será bem-vindo!

Que Deus o abençoe!