terça-feira, 6 de abril de 2010

Dois espiões demais

Todos nós (ou, pelo menos, a maior parte) conhecemos a famosa história dos doze espias que Moisés, por ordem de Deus, enviou à terra de Canaã. O livro de Números dá nome aos bois, ou melhor, aos espiões: Samua, Safate, Calebe, Jigeal, Oséias (a quem Moisés depois chamou de Josué), Palti, Gadiel, Gadi, Amiel, Setur, Nabi e Geuel (Nm 13.1-16). O relatório requerido por Moisés consistia de basicamente quatro itens (Nm 13.18-20): 1) o tipo de terreno (“vede a terra, que tal é”) e seu nível de hostilidade (“se é boa [a terra] ou má”) aos israelitas; 2) o potencial bélico (“se é forte ou fraco”) e o número (“se poucos ou muitos”) de seus habitantes; 3) o tipo de instalação – o que no Exército chamamos de “fortificações de campanha” – que os habitantes locais ocupavam ( “se em arraiais, se em fortalezas”); e 4) a qualidade do solo (“se é fértil, se é estéril, se nela [na terra] há matas ou não”).

Os espias fizeram como Moisés mandara: saíram do deserto de Parã e “subiram e espiaram a terra desde o deserto de Zim até Reobe, à entrada de Hamate. E subiram pelo Neguebe e vieram até Hebrom […]. Depois, vieram até ao vale de Escol e dali cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas, o qual trouxeram dois homens numa vara, como também romãs e figos” (Nm 13.21-23). O itinerário, meticulosamente escolhido, possibilitou aos espias que se furtassem à observação inimiga. E ainda deu até para trazer alguns frutos da terra! Ou seja, taticamente falando, eles foram impecáveis (não no sentido teológico da palavra).

Porém, o relatório de quarenta dias de espionagem em terra alheia não foi tão “impecável” assim. Aliás, é bom que se diga que foi um relatório extremamente pecável (agora sim, no sentido teológico do termo). O que acontece é que simplesmente dez dos doze espias eram incrédulos. Senão, vejamos:

Relataram a Moisés e disseram: Fomos à terra que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel; este é o fruto dela. O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades, mui grandes e fortificadas; também vimos ali os filhos de Anaque. Os amalequitas habitam a terra do Neguebe; os heteus, os jebuseus e os amorreus habitam na montanha; os cananeus habitam ao pé do mar e pela ribeira do Jordão (Nm 13.27-29 – itálico meu).

Como a memória desse povo era curta! Deus acabara de libertá-los do Egito e eles não lembravam mais! Não se trata de “amnésia” não, meus caros – é incredulidade mesmo! Mas, eis que surge em cena um “espião demais” – Calebe, filho de Jefoné. A despeito do relatório pessimista e incrédulo dos dez, ele retrucou: “Eia! Subamos e possuamos a terra, porque, certamente, prevaleceremos contra ela” (Nm 13.30). Mas não adiantou. “Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós”, replicaram os dez. E continuaram nesse ritmo, dizendo coisas do tipo “aquela terra lá devora seus moradores”, “ali moram gigantes”, “somos como meros gafanhotos aos olhos deles”, etc, etc, etc (Nm 13.31-33).

Resultado: o povo se desesperou. Quem ficaria tranquilo após receber notícias tão “animadoras” como essas? “Tomara tivéssemos morrido na terra do Egito ou mesmo nesse deserto” – era o desejo da multidão de israelitas desesperados (Nm 14.2). Sim, os hebreus desejaram ardentemente voltar para a terra de Faraó. Inclusive, foi até cogitada a ideia de nomear-se um capitão para levá-los de volta para lá (14.4). Isso foi a gota d’água para Moisés. Ele e Arão caíram prostrados sobre o próprio rosto perante toda a congregação. E agora, José, ops!, Moisés? O que fazer?

Eis que surge em cena o outro “espião demais” – Josué, filho de Num, da tribo de Judá e tipo de Cristo. Depois de rasgar as vestes em face de tão grande gesto de incredulidade e ingratidão cometido pelo povo, ele se levanta, juntamente com Calebe, e diz ao povo que a terra que eles haviam espiado não é ruim coisíssima nenhuma, mas é terra “muitíssimo boa”. Ele também diz que a herança da terra dependerá do agrado de Deus em lhes dá-la, e que, quanto aos gigantes, os israelitas os devorariam “como pão”. Tudo isso só seria possível porque o Senhor era com eles (14.6-9). Ainda assim, mesmo com todas essas palavras de ânimo, o povo sugeriu que os “dois espiões demais” fossem apedrejados. “Porém, a glória do SENHOR apareceu na tenda da congregação a todos os filhos de Israel” (14.10 – itálico meu), impedindo-os de cometerem tal loucura.

O final da história já conhecemos: os dez espias incrédulos não viram (herdaram) a terra que o Senhor havia prometido. E mais: para cada dia que passaram espiando a terra, o Senhor lhes acrescentou em anos de peregrinação no deserto. Ou seja, quarenta dias = quarenta anos (Nm 14.22, 34). Josué e Calebe também peregrinaram os quarenta anos com o povo no deserto, mas o final deles foi feliz. Josué, tipificando a Cristo (Libertador), sucedeu a Moisés na conquista da Canaã. E Calebe, já com a idade de aproximadamente cento e vinte anos, tomou a Hebrom por herança, já com Josué à frente do povo (Js 14.13, 14).

A história desses “dois espiões demais” pode nos ensinar muitas coisas. Não me refiro à arte da espionagem (inteligência, contra-inteligência, etc.), e sim, à arte da fé incondicional e irrestrita no Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Como o próprio apóstolo Paulo mesmo fala aos cristãos de Corinto, certos episódios da história dos hebreus nos servem de exemplo (1Co 10.1-13). Podemos e iremos encontrar muitos obstáculos que visam nos impedir de chegar à nossa Canaã celestial. Contudo, não esmoreçamos: perto de uma fé genuína e inabalável, os “gigantes” redundam-se em nada!

Soli Deo Gloria!

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