segunda-feira, 9 de agosto de 2010

“Algumas certezas, muitas dúvidas” – Sobre a fé incrédula da espiritualidade pós-moderna

dúvida4 É interessante como o lema da propaganda do seriado global Malhação, algumas certezas, muitas dúvidas”, tem tudo a ver com o tipo de “espiritualidade” que muitos evangélicos tem abraçado nos dias de hoje. Ao contrário da espiritualidade do antigo Evangelho, que sempre se pautou mais pelas certezas do que pelas dúvidas dos crentes, o que pode ser percebido pela grandeza dos credos e confissões de fé antigas, a nova espiritualidade não apenas se firma sobre um terreno movediço, mas também parece até se orgulhar disso. E não estamos falando daquele tipo de questionamento sobre se o batismo deve ser por imersão ou por aspersão; ou se as mulheres devem ou não orar no culto, mas se os pontos fundamentais do cristianismo são mesmo tão fundamentais assim. Para quem ainda não a conhece, esta é a boa (ops!) e velha incredulidade, que na maioria das vezes se esconde sob a capa de um dócil espírito piedoso.

Ricardo Gondim escreveu um livro cujo título reflete muito bem o que propõe esse tipo de espiritualidade. O livro se chama Eu creio, mas tenho dúvidas – a graça de Deus e as nossas frágeis certezas [o negrito não é meu], e foi lançado pela editora Ultimato em 2007. Apesar do título aparentemente inofensivo e “piedoso”, o livro, que na realidade é uma coletânea de artigos do autor, no conjunto se mostra um verdadeiro amálgama não de crenças, mas de descrenças (salvo alguns capítulos em que ele apropriadamente rejeita o evangelho da prosperidade e outras esquisitices neopentecostais), onde há endossos (por vezes explícitos) a engodos como a teologia relacional e as teorias desconstrucionistas de Foucault e Derrida, somente para citar os mais relevantes. Curiosamente, o mesmo Ricardo Gondim fez a apresentação de outro livro com o mesmo tema, agora lançado pela editora Mundo Cristão, cujo título é Fé e Descrença, de autoria de Ruth Tucker (na realidade, o evento foi um debate sobre o assunto do livro, promovido pela própria editora). Confesso que não li toda a obra, mas a julgar pelo seu próprio título e também pelo tema abordado por Gondim em sua palestra de apresentação, a qual ele sugestivamente intitulou de “A fé de mãos dadas com a dúvida” (aqui), nem é preciso folheá-la toda para saber do que se trata.

O mais interessante é que os duvidosos se mostram sempre muito humildes e, na maioria dos casos, muito piedosos. Aliás, é bom que se diga que esta é, na realidade, uma das principais táticas que eles usam para não serem precocemente rechaçados. Na grande maioria das vezes eles adotam uma postura defensiva contra tudo aquilo que eles chamam de cristianismo “elitista”, “desumano”, “opressor”, “arrogante” e até “anticristão”, exaltando conceitos nobres como liberdade, diversidade, justiça e democracia, sempre com o intuito de que as pessoas os vejam como vítimas da “ortodoxia fundamentalista” (a “monolítica teologia evangélica estadunidense”) daqueles que reclamam para si o cristianismo histórico. Assim como existem os marginalizados sociais, os duvidosos se sentem como os “marginalizados teológicos” dessa disputa. Mas cuidado: em alguns casos tudo isso pode não passar de pura ironia.

Arrependo-me de ter aliciado algumas pessoas para meu texto. Atraí alguns imprudentes leitores e eles, coitados, passaram a gostar das minhas doidices autofágicas, das minhas apostasias teológicas e dos meus delírios existenciais. Pior, condenei-me a continuar escrevendo para alimentar esses famintos pintassilgos que, de bico aberto, esperam o insípido pão que regurgito em forma de palavra.

Gondim, Ricardo. Op. cit. p. 13.

É justo reconhecer, entretanto, que nem todos usam essa tática com o fim último de ganhar adeptos, embora isso acabe, no fim das contas, por aliciar gente inconstante e imatura para o terrível, porém convidativo, mar da incerteza, onde há pouquíssima luz e muita escuridão. A despeito de sua crença (ou da falta dela), também é bom que se diga que nem todos os duvidosos são, por assim dizer, libertinos práticos, pois nem todos estão envolvidos em escândalos sexuais, drogas, alcoolismo, lavagem de dinheiro e coisas do tipo, o que não os melhora em muita coisa, é verdade, mas que pelo menos livra suas caras das páginas que os jornais dedicam aos abusos eclesiásticos nossos de cada dia.

Toda essa maré de incertezas me faz crer que a máxima modernista de que “tudo o que é sólido desmancha-se no ar” (Marx) parece ter encontrado terreno fértil na religiosidade dos dias atuais. Na cultura hodierna a fé não pode mais sobreviver sem a dúvida. Melhor: as incertezas são infinitamente mais sublimes do que as convicções. A virtude de um homem não está mais na robustez de sua fé, e sim na fragilidade da mesma. Incrível isso, não? Como diria Humberto Gessinger, líder da banda de rock Engenheiros do Hawaii, “a dúvida é o preço da pureza, e é inútil ter certeza”. Ora, é o próprio deus (de cognome “Papai”) do best-seller A Cabana quem diz que “a fé não cresce na casa da certeza”. Se foi “Deus” mesmo quem disse, o que questionar? Até mesmo o Espírito Santo (de cognome “Sarayu”) disse que “gosto demais da incerteza”. E, para que toda a Trindade enfim endosse esse culto à dúvida, só falta o parecer de Jesus, que não diz exatamente que está “incerto” quanto a algo, mas hilariamente declara que “eu não sou cristão” e que “minha vida não se destinava a tornar-se um exemplo a copiar”[1]. De fato, numa sociedade onde nem a própria divindade crê mais em uma verdade absoluta, nada disso surpreende.

Mas apesar de estar bastante em voga nos dias de hoje, essa temática na realidade é bem antiga. Não, não estou me referindo às teorias ateias de Marx nem ao Iluminismo, muito menos aos seus filhotes – os liberais. Estou me remontando ao Éden, pois foi lá que a guerra pela Verdade adentrou na História. Com uma clareza mais que indubitável, Deus havia dito ao casal que ele acabara de criar que se eles comessem da árvore do conhecimento do bem e do mal certamente morreriam. Deus não disse que “provavelmente” a desobediência desembocaria em morte, mas “certamente morrerás” (Gn 2.17). Então a serpente, o mais sagaz de todos os animais selváticos, semeou a dúvida na mente de Eva: “Foi assim que Deus disse: não comereis de toda árvore do jardim?” (Gn 3.1). O resultado final foi que o casal acabou cedendo à tentadora oferta que Santanás lhes propôs, a de ser “como Deus”, tendo sido lançada naquele dia as bases de um piso escorregadio que até hoje tem levado a humanidade a deslizar e cair em todas as formas de paganismo. E é justamente por isso que a dúvida tem conquistado o seu espaço no panteão moderno como uma divindade digna de ser adorada.

Àqueles que me oferecem, muito obrigado, mas eu não quero abraçar essa tal “espiritualidade”, pois ela propõe exatamente um outro deus, apesar de este ser sempre inclusivo, não preconceituoso e indulgente para com tudo, até mesmo para com os nada-indulgentes cristãos “tradicionais”. Não quero essa espiritualidade porque ela cheira àquilo que Paulo tanto advertiu a Timóteo, de que certas pessoas ostentariam um certo tipo de “piedade”, mas que no fim de tudo negariam o poder desta tanto por seu credo quanto por suas práticas malignas (2Tm 3.5), ainda que estas reluzissem como verdade (cf. 2Co 11.14). Não quero essa tal espiritualidade porque ela me faz lembrar dos místicos medievais, que, de tanto abraçar o “mistério”, acabaram por reduzir a fé cristã a meros exercícios ascéticos e contemplativos, mantendo viva a tocha gnóstica que os pais primitivos tanto lutaram para apagar. E por fim, não quero essa tal espiritualidade porque no fim das contas ela acaba desacreditando daquilo que o apóstolo denominou de “coluna e baluarte da verdade”: a igreja (1Tm 3.15).

Vou ficar mesmo com a fé do cristianismo histórico, que, a despeito da fragilidade de seus personagens, certamente diria com a mais firme convicção que as certezas sempre sobrepujam as dúvidas, ainda que estas não sejam poucas.

Soli Deo Gloria!

________________________________________

[1] Young, William P. A Cabana. Editora Sextante. As citações “entre aspas” encontram-se nas páginas 176, 190, 168 e 136, respectivamente.

Share |

4 comentários:

Fernando Pasquini disse...

Costumo ler este blog faz algum tempo, e só tenho a parabenizar o autor pelos textos. Este se destacou de uma forma que não poderia deixar de fazer um comentário.

Talvez seja óbvio, mas se alguém acredita que fé envolve incertezas, não está de acordo com a Bíblia. "Fé é a CERTEZA das coisas que não se vêem."

Não vou negar que nunca tive períodos de incertezas na minha vida cristã. Mais: já cheguei a ter enormes questionamentos sobre fé, sobre o Espírito Santo e sobre vários pontos do Cristianismo. Mas estou muito longe de me orgulhar disso e muito menos acredito que isso me torna a minha fé "melhor". Pelo contrário, oro cada vez mais, e peço que orem por mim, para que o Espírito abra meus olhos e me permita ver a Verdade que só vem da revelação de Deus.

Um grande abraço em Cristo!

Fernando

Leonardo Bruno Galdino disse...

Fernando,


Também compartilho com o seu testemunho. Aliás, não somente eu, certamente, mas muitos. Que possamos nos agarrar ao fato de que a fé é mesmo a "certeza das coisas que não se veem"... (Hb 11).

Abraços!

Daniel Clós disse...

Leonardo, não conhecia seu blog (este blog, conhecia o 5 calvinistas) até que este texto foi publicado no Bereianos e no Púlpito Cristão, onde regularmente meus textos são publicados.

Escrevi um texto "comentando os comentários" que li no seu texto. Espero não ter ofendido fazendo uso de suas letras.

Soli Deo Gloria

Leonardo Bruno Galdino disse...

Daniel Clós,

Li seus comentários no Bereianos e no Púlpito Cristão e também o texto que você escreveu "comentando os comentários". Bem que eu queria responder a alguns comentários que discordaram do que escrevi, mas você já falou quase tudo! rsrsrs! Obrigado por ter me poupado tempo! hehehe!

É um prazer te conhecer, cara!

Abraços!

Postar um comentário

Muito obrigado por comentar as postagens. Suas opiniões, observações e críticas em muito nos ajuda a buscar a qualidade teológica naquilo que escrevemos. Se for de opinião contrária, não ofenda - exponha sua perspectiva educadamente. Comentários anônimos não assinados ou desrespeitosos não serão publicados. Todo debate será bem-vindo!

Que Deus o abençoe!