terça-feira, 27 de abril de 2010

Da caserna [1] - A melhor farda para Deus

[Visto que considero o Exército como uma verdadeira mina de ouro em metáforas para a igreja, inicio hoje a série “Da Caserna”, baseada em minhas experiências como militar. É bom que fique bem claro que são baseadas em minhas experiências. Portanto, o leitor atento evitará generalizações].

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Em todos os quarteis em que passei a história sempre se repete: visita (inspeção) de general, seja ele de Brigada, Divisão ou Exército, é sinônimo de muita, mas muita correria. Afinal de contas, trata-se de recepcionar o mais alto posto* do Exército. As instalações ganham pintura nova; a grama é aparada; o mato é arrancado; a documentação das seções é atualizada – ou seja, toda uma marcha frenética para deixar tudo nos trinques e causar uma ótima impressão no chefe, impressão esta que é confirmada com uma formatura digna de uma tropa adestrada, vibrante e de refinada ordem unida. Inclusive a farda do pessoal tem que estar em perfeitas condições, principalmente para a guarda-do-quartel, que é a primeira a receber a autoridade que ora chega. Costumamos alcunhar a referida guarda de “o cartão de visitas” do batalhão. Recentemente, comandei uma dessas guardas por ocasião da visita de um general-de-exército ao quartel onde sirvo. Os soldados receberam, cada um, uma farda nova somente para a ocasião. “É que, para o general, tem que ser a melhor farda” – diziam alguns dos oficiais do batalhão. “Até parece que o general é Deus [sic]” – rebatiam algumas praças indignadas.

Não quero discutir se a razão está com os oficiais ou com as praças, mas aproveitar a deixa deles para uma reflexão: será que estamos sempre preocupados em colocar “a melhor farda” para Deus? Ou será que deixamos isso apenas para as ocasiões que consideramo s “especiais” (momento de oração, culto dominical, etc.)?

Se formos pensar em “farda” com sendo nossa justiça própria, é certo que não nascemos com uma que seja suficiente para merecermos o favor de Deus. De acordo com o profeta Isaías, até mesmo nossas ações mais respeitáveis não passam de “trapos de imundícia” aos olhos dAquele que é Santo, Santo, Santo (Is 64.6 – cf. cap. 6). As folhas de figueira (justiça própria) confeccionadas pelo casal edênico não foram suficientes para encobri-lo de sua nudez – foi necessário que o próprio Deus lhes providenciasse a vestimenta (Gn 3.7-21). A única forma possível de se agradar a Deus é, pois, vestir-se com a “farda” que Ele mesmo oferece: a justiça de Jesus Cristo, seu Filho, que cobre nossos pecados e nos torna aceitáveis diante do Pai; não por nossos próprios méritos, mas exclusivamente por Sua Soberana Graça.

Uma vez, pois, revestidos da justiça de Cristo, cabe a nós andarmos em novidade de vida (Rm 6.4), despojando-nos do nosso “velho homem” (a “velha farda”) e revestindo-se do “novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.22-24). Esta é a “farda nova” com a qual devemos sempre andar diante do nosso General, o Senhor dos Exércitos. Uma vez que chegamos à situação de “nova criatura” (2Co 5.17), nosso Criador espera que vivamos como tal. E, assim como no exército terreno o soldado não pode  usar uma peça que não esteja prevista no regulamento de uniformes, assim também o soldado de Cristo não pode inventar a sua própria “indumentária espiritual”. Paulo mesmo é quem diz que nossa justiça e retidão são procedentes única e exclusivamente “da verdade”. Não podemos buscar o padrão requerido por Deus em outra fonte. Qualquer disciplina espiritual que fuja dos padrões estabelecidos por Ele redundar-se-á em desobediência (indisciplina) e fanatismo (cegueira). Portanto, exercícios como penitências, ascetismo religioso e vida monástica, por exemplo, para nada servem se não estiverem respaldados pelo “Regulamento de Deus” – a Escritura Sagrada.

Mas que isto não sirva de evasiva para aqueles que querem esquivar-se de suas responsabilidades! Todo quartel deveria sempre estar com sua faxina, instalações e documentação em dia, mesmo que não esteja prestes a ser inspecionado por algum general. E um bom soldado é exatamente aquele que faz o que é certo mesmo sem estar diante de seu superior. Tal atitude é responsabilidade de cada um. É o que chamamos aqui no Exército de “disciplina consciente”. O que deve motivar um filho de Deus, entretanto, não é exatamente o fato de ele saber que os olhos do Senhor estão em absolutamente em todos os lugares, perscrutando minuciosamente nossas mais “insignificantes” imperfeições (cf. Sl 139), mas o fato de que ofender a Deus é algo tão monstruoso que ele deve odiar tal coisa do fundo de sua alma. Assim como o bom soldado não busca agradar a seu senhor somente para se ver livre do peso de sua mão, o soldado de Cristo não deve agradá-lo somente para escapar do terror porvir – o Juízo Final. Como bem disse Calvino, “visto que o fiel ama a Deus como seu Pai e o teme como seu Senhor, mesmo que não existisse inferno, ofender a Deus lhe causaria horror”. E aí, podemos dizer o mesmo? Ou melhor, podemos viver o mesmo? Se o nosso General viesse agora, você estaria em condições de ser arregimentado ao Exército Celestial? A propósito, você já escolheu a sua “melhor farda” hoje?

Soli Deo Gloria!

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* O posto mais alto do Exército, na realidade, é o de marechal. Mas no Brasil tal posto só é ocupado em caso de guerra.

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terça-feira, 20 de abril de 2010

Corpo: o “cárcere” da alma? Calvino e a antropologia platonista

[Em minha última postagem expus brevemente o que Calvino pensava de Platão. Agora, nosso objetivo é averiguar até que ponto o reformador francês foi influenciado pelo filósofo grego no tocante à doutrina do homem (antropologia), particularmente no que se refere à polêmica relação corpo/alma. O texto está mais extenso do que eu pretendia, mas consideremos que as citações a Calvino, que ocupam a maior parte do presente artigo, foram indispensáveis à nossa exposição e pesquisa].

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Recentemente estive discutindo com alguns amigos sobre o que Calvino pensava da máxima platônica de que o corpo é o “cárcere” da alma. Todos eles se mostraram surpresos quando lhes mostrei trechos das Institutas em que Calvino explicitamente usa a terminologia platônica. “É. É platonismo mesmo!” – exclamavam eles à medida em que liam. Eu lhes disse que escreveria algo para tentar esclarecer essa questão, o que comecei a fazer em minha postagem anterior. É óbvio que para um calvinista não é fácil escrever discordando de Calvino; não que Calvino seja perfeito, mas o fato é que muitos de nós, os reformados, sofremos de um tipo muito suspeito de “miopia” quando alguma tarefa exige que enxerguemos os desacertos do reformador. No meio da conversa com um deles, cheguei até mesmo a suplicar (humoristicamente, é óbvio!) para que Deus afastasse de mim esse “cálice”, mas este amigo me disse (com muita propriedade, diga-se de passagem) que expor tal questão será bom para demolir certas ideias que muitos nutrem a respeito de nós, a saber, que somos “mais discípulos de Calvino do que de Cristo”, que consideramos Calvino infalível, etc. As palavras que se seguem, portanto, são uma tentativa de desmistificar umas coisas (que somos “calvinistas fanáticos e cegos”), esclarecer outras (se Calvino era ou não platônico) e reafirmar mais algumas (que, a despeito de suas falhas, ele continua sendo um grande teólogo; e que o Sola Scriptura subjuga a qualquer escrito humano).

[PLATÃO E O “CÁRCERE”]

A ideia de que o corpo é o “cárcere” da alma remonta ao filósofo grego Platão (427-347 a.C.), um dos mais influentes pensadores de todos os tempos. Em um trecho de Fédon, uma de suas obras mais conhecidas, esse pensamento se torna flagrante:

É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma, quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim, ela estava submersa numa ignorância absoluta.

Fédon, 82d.

Platão cria que as almas são eternas (preexistentes) e habitam no mundo das ideias. Antes de encarnarem, elas passam por uma espécie de “esquecimento”, e nascem (encarnam) esquecidas de tudo. Desde então, tudo o que querem é voltar ao mundo das ideias (o “hiperurânio”), livrando-se da “prisão” da carne (do corpo). “A libertação desta prisão pode ser conseguida mediante cerimônias báquicas, através da graça dos deuses que providenciam a redenção, ou mediante a renúncia ascética da existência terrestre. Hermes leva as almas imortais ao outro mundo. Ali, para os não iniciados, os amyetoi e os atelestoi, aguarda a lama (borboros) do hades (Platão, Phaedo 60c)” [TDNT, p. 71].

Para Platão, quem tem a função de trazer à memória da alma (Teoria da Reminiscência) o conhecimento que ela tinha no mundo das ideias é a filosofia, que assume, no contexto platônico, a identidade própria da piedade (religião). Os desdobramentos do platonismo podem ser encontrados tanto na filosofia gnóstica, que rejeitava a carne como sendo inferior e até mesmo “má”, quanto no neoplatonismo, que foi uma tentativa de interpretar o platonismo clássico em termos do misticismo.

[CALVINO E O “CÁRCERE”]

Para evitar prolixidade demasiada, vou procurar ser o mais específico possível.

Calvino julgou como “verazes”, “agradáveis de se conhecer” e “proveitosas” certas coisas que os filósofos ensinaram sobre a alma. Referindo-se às faculdades desta, Calvino diz que

Quanto, porém, às próprias faculdades da alma, relego aos filósofos que dissertem com mais sutileza. Para que a piedade seja edificada, nos será suficiente uma definição singela. Confesso que as coisas que ensinam são realmente verazes, não apenas agradáveis de se conhecer, como também são proveitosas e por eles habilidosamente coligidas, nem tampouco proíbo de seu estudo aqueles que estão desejosos de aprender.

Institutas. I.15.6.

Embora Calvino não tenha citado nomes, penso que o filósofo que ele tem em mente é mesmo Platão, visto que, no parágrafo seguinte, ele o cita. Além do mais, o reformador ainda diz, nesta mesma seção, que

Seria estulto buscar definição de alma da parte dos filósofos, dos quais quase nenhum, excetuando Platão, tem plenamente afirmado ser sua substância imortal.

Institutas. I.15.6.

Calvino ainda parece concordar com o que Platão fala acerca dos cinco sentidos, aos quais, diz o reformador, “mais agrada a Platão designá-los de órgãos, mediante os quais todas as coisas postas diante de nós se instilam no senso comum, como em uma espécie de receptáculo” (Institutas. I.15.6).

Assim como o filósofo, o reformador também cria na imortalidade da alma, porém não do mesmo modo que Platão, que cria na imortalidade desta em termos de sua preexistência. Para Calvino, a alma não é imortal por si mesma, mas sua imortalidade foi-lhe comunicada por Deus, o único Ser imortal por Si mesmo. Sobre a passagem de 1 Timóteo 4.16, onde Paulo se refere a Deus como “o único que possui imortalidade”, Calvino comenta que

[…] Paulo não está negando que Deus confira imortalidade a algumas de suas criaturas como lhe apraz; mas é ainda verdade que unicamente Ele a possui. É como se o apóstolo dissesse que Deus não é só o único ser inerentemente e por sua própria natureza imortal, mas também que Ele tem a imortalidade em seu poder, de modo que ela não pertence às criaturas, senão até ao ponto em ele lhes comunica energia e poder.

As pastorais. Ed. Fiel, 2009. p. 177.

Até aqui tudo bem; nada de tão comprometedor assim. O “problema” começa quando o corpo entra em cena, e Calvino resolve usar conceitos e terminologias platônicas para designá-lo.

Penso que a assertiva mais comprometedora do reformador no que se refere ao assunto que estamos considerando é a que segue:

E Cristo, encomendando o espírito ao Pai [Lc 23.46], como também Estêvão o seu a Cristo [At 7.59], não entendem outra coisa senão isto: quando a alma é liberada do cárcere da carne, Deus lhe é o perpétuo guardião.

Institutas, I.15.2.

Se Calvino tivesse omitido a Cristo e a Estêvão, menos mal. Mas o problema está justamente no fato de ele usar tais exemplos para apoiar seu parecer. A pergunta que devemos fazer é: será mesmo que Cristo ansiava por libertar-se do “cárcere” da carne quando entregou seu espírito ao Pai (Lc 23.46)? Será que era isto mesmo que Ele tinha em mente? E Estêvão (At 7.59), idem? Penso que o que Calvino fala aqui, infelizmente, não pode se sustentar diante de uma exegese firme e sadia.

Assim como Platão, Calvino também entendia que a alma é mais sublime que o corpo:

Afinal, que o ser humano consta de alma e corpo, deve estar além de toda controvérsia. E pela palavra alma entendo uma essência imortal, contudo criada, que lhe é das duas a parte mais nobre.

Institutas. I.15.2.

E não somente isto, mas também que a alma é essenciada, enquanto que o corpo não o é:

Ora, se a alma não fosse algo essenciado, distinto do corpo, a Escritura não ensinaria que habitamos casas de barro e que na morte migramos do tabernáculo da carne, despojamo-nos do que é corruptível para que, por fim, no último dia recebamos a recompensa, em conformidade com o que, enquanto no corpo, cada um praticou.

Institutas. I.15.2.

Todavia, os textos da Escrituras que Calvino usa para apoiar sua ideia (a de que a alma é essenciada) não a justificam, a menos que neguemos que nossa ressurreição será, de fato, corpórea. Ora, incorruptibilidade não significa imaterialidade (cf. Lc 24.39; Jo 20.27).

Parece que Calvino cria, assim como Platão, que uma alma não regenerada igualava-se ao corpo mortal. Notemos a semelhança entre um trecho de Fédon e o comentário de Calvino à passagem de Romanos 7.24 (“quem me livrará do corpo desta morte?”):

Platão:

“Todo prazer e todo sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que ela se torne material e passe a julgar a verdade das coisas conforme as indicações do corpo” (Fédon, 83d – negrito meu).

Calvino:

“O termo corpo significa o mesmo que homem exterior e membros […] . Ainda que ele exceda os brutos, sua verdadeira excelência foi-lhe arrebatada, e o que resta está saturado de infindas corrupções, de modo que, enquanto sua alma não for regenerada, pode-se dizer com razão que ela se converteu em seu corpo” (Romanos. Ed. Parakletos, p. 262 – negrito meu).

Realmente, o posicionamento de Calvino aqui é muito estranho. A menos que ele esteja se referindo ao estado insolúvel daqueles que não hão de se converter e parecerão, de corpo e alma (literalmente), no inferno, sua sentença até que poderia ser considerada. Contudo, o próprio contexto deixa claro que não era isto que o reformador tinha em mente.

Mas antes que façamos julgamentos precoces acerca de Calvino, dizendo que ele é um “platônico moderado” (ou mesmo, “inveterado”) e coisas do tipo, é bom atentarmos para uma coisa: qualquer intérprete sagaz perceberá que o reformador, muitas vezes, interpretava Platão nos termos da fé cristã.

Por exemplo, quando ele concorda com o filósofo sobre a correta forma de orar, ele não está sugerindo que oremos ao deus Júpiter, mas que peçamos ao nosso Deus somente aquilo que Ele mesmo nos instrui a pedir.

Como visse a imperícia dos homens na apresentação de seus rogos a Deus, os quais, se concedidos, muitas vezes lhes seria prejudicial, Platão declara que a melhor forma de orar é esta, apropriada de um poeta antigo: “Ó Rei Júpiter, confere-nos as coisas melhores, quer as desejemos, quer não; as coisas más, porém, ordena que fiquem longe de nós, ainda quando as peçamos”. E esse homem, na verdade pagão, nisto é sábio, porque sentencia quão perigoso é buscar do Senhor o que nossa cabeça haja ditado; ao mesmo tempo, põe à mostra nossa infelicidade, visto que, na realidade, nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm 8.26].

Institutas. III.20.35.

Ora, Paulo não fez o mesmo quando se apropriou de um poema pagão para mostrar aos gregos que “dele [de Deus] também somos geração” (At 17.28)? Não estou expondo isso para “livrar o pescoço” do reformador, mas para que sejamos imparciais e desapaixonados ao máximo em nossa abordagem. Essa tendência em Calvino pode ser encontrada mais uma vez numa rara passagem das Institutas, onde o “cárcere” e Platão aparecem ali, juntinhos. Calvino, novamente, vale-se do filósofo, agora para ilustrar a incessante busca do crente pela santificação:

Portanto, enquanto habitamos no cárcere de nosso corpo, temos de lutar continuamente com as imperfeições de nossa natureza corrupta; na verdade, com nossa alma natural. Platão diz algumas vezes que a vida do filósofo é a meditação da morte. Com verdade maior, podemos dizer que a vida do cristão é um contínuo esforço e exercício para a mortificação da carne, até que, morta inteiramente, o Espírito de Deus obtenha em nós o reino.

Institutas. III.3.20.

Seria no mínimo insensato de nossa parte não admitirmos isto. O que para Platão era um ascetismo sem fim, Calvino traduziu em uma contínua busca (do crente) pela santidade que Deus requer de seus filhos. Este mesmo princípio analógico utilizado pelo reformador também pode ser encontrado na seguinte frase:

Tampouco nos deixemos afastar pelo temor ou nos subtraiamos à sua instrução porque prescreve uma santidade muito mais estrita do que haveremos de experimentar enquanto carregarmos conosco o cárcere de nosso corpo.

Institutas. II.7.13.

Nesse caso, Calvino está se referindo ao próprio padrão de retidão que Deus estabeleceu para nós – a sua Lei. Outras passagens em que o reformador expõe a dificuldade da nossa peregrinação valendo-se da ideia do “cárcere”:

“Mas, uma vez que não sobeja a ninguém tanta força, neste cárcere terreno do corpo, que se possa avançar com a justa celeridade da corrida, ao contrário tão grande fraqueza oprime a grande maioria que, vacilando e claudicando, até mesmo rastejando no solo à frente se movem com dificuldade, avancemos, cada um segundo a medida de sua reduzida capacidade, e prossigamos a jornada iniciada. Ninguém vagueará tão desafortunadamente que não avance cada dia ao menos um pouco de caminho” (Institutas. III.6.5);

“Pois uma vez que esperamos coisas que não se vêem [Rm 8.25], e, como se diz em outro lugar, “a fé é a demonstração de coisas invisíveis [Hb 11.1], enquanto estivermos encerrados no cárcere da carne, somos “peregrinos longe do Senhor” [2Co 5.6]. Por essa razão, o próprio Paulo diz em outro lugar que “já morremos e nossa vida está escondida com Cristo em Deus, e quando ele próprio, que é nossa vida, se manifestar, então também nos manifestaremos com ele em glória” [Cl 3.3, 4]. Esta, pois, é nossa condição: “que vivamos sóbria, justa e piedosamente neste mundo, aguardando a bendita esperança e a vinda da glória do grande Deus e nosso Salvador, Jesus Cristo” [Tt 2.12, 13]” (Institutas. III.25.1).

Em seu comentário sobre o texto de 2 Coríntios 5.4, onde Paulo fala algo acerca das angústias que sofremos em nossa presente vida (“neste tabernáculo”), Calvino parece endossar algo parecido:

[…] Ademais, ele explica a metáfora, dizendo: a fim de que a mortalidade seja absorvida pela vida. Visto que carne e sangue não podem herdar o reino de Deus [1Co 15.50], o que é corruptível em nossa natureza precisa morrer, para que sejamos completamente renovados e restaurados a um estado de perfeição. Esta é a razão porque nosso corpo é tido como uma prisão (carcer) da alma.

2 Coríntios. Ed. Fiel, 2009, p. 137 – 2Co 5.4.

A isto podemos agregar o que ele disse sobre a perfeita liberdade que haveremos de gozar por ocasião da nossa glorificação:

Se ser libertado do corpo é ser lançado à perfeita liberdade, que outra coisa é o corpo senão um cárcere? Se fruir da presença de Deus é a suprema síntese da felicidade, porventura não é miserando carecer dela? Com efeito, até que nos tenhamos evadido do mundo, peregrinamos longe do Senhor [2Co 5.6].

Institutas. III.9.4.

Calvino ainda fala do “cárcere” para se referir ao meio que Deus, por sua “admirável” Providência, estabeleceu para que nos achegássemos a ele – a sua santa Igreja:

Ora, visto que, encerrados no cárcere de nossa carne, ainda não chegamos ao grau angélico, Deus, acomodando-se a nossa capacidade, por sua admirável providência, prescreveu um modo pelo qual, por mais longe estejamos afastados, a ele nos achegássemos.

Insitutas. IV.1.1 (vd. contexto).

Calvino também associava a ideia do “cárcere” ao pecado. Sobre o fato de o batismo não nos livrar de pecar, Calvino diz que

O batismo, na verdade, nos promete ter sido afogado nosso faraó [Ex 14.27, 28] e a mortificação de nosso pecado; entretanto, não a um tal grau que não mais exista, ou que não nos cause dificuldade, mas somente que não mais nos sobrepuje. Porque, por todo o tempo que passarmos enclausurados neste cárcere de nosso corpo, em nós residirão remanescentes do pecado; mas, se em fé mantivermos a promessa a nós dada por Deus no batismo, sobre nós não dominarão, nem reinarão.

Institutas. IV. 15.11.

Calvino também falou em “cárcere” com relação a Jesus. O reformador se defende contra as acusações de que ele estaria “confinando” (limitando) o logos de Deus à natureza humana de Cristo:

Também, o que nos lançam em rosto como sendo absurdo, a saber, se a Palavra de Deus vestiu a carne, logo foi ela confinada ao cárcere estrito de um corpo terreno, é puro descaramento, pois embora a essência infinita do Verbo se unisse com a natureza de um homem em uma pessoa única, no entanto não imaginamos haver qualquer confinamento.

Institutas. II.13.4.

É provável que os acusadores de Calvino tenham se valido dos próprios ditos do reformador para acusarem-no de tal blasfêmia.

Em outro trecho das Institutas, onde Calvino habilmente refuta a doutrina romana da transubstanciação, mais uma vez o “cárcere” aparece, mas (penso eu) não com a concepção platônica. E mais uma vez o assunto envolve a pessoa de Cristo:

A menos que o corpo de Cristo possa estar em toda parte a um mesmo tempo, sem qualquer limitação de lugar, não será crível estar ele escondido sob o pão na Ceia. Por esta necessidade foi por eles [os escolásticos] introduzida a monstruosa noção de ubiqüidade [onipresença]. Mas, à luz de sólidos e claros testemunhos da Escritura, demonstrou-se que o corpo de Cristo está circunscrito pela medida de um corpo humano; além disso, por sua ascensão ao céu, ficou claramente manifesto que ele não está em todos os lugares; ao contrário disso, quando ele passa a um lugar, deixa o anterior. […] Desta maneira, o Filho do Homem estava também no céu, porque o mesmo Cristo que, segundo a carne, como Filho do Homem habitava na terra, como Deus estava no céu. Razão por que nessa própria passagem se diz que ele desceu segundo a divindade, não que a divindade deixasse o céu para esconder-se no cárcere do corpo, mas porque, embora a tudo enchesse, contudo na própria humanidade de Cristo habitava corporalmente [Cl 2.9], isto é, segundo a natureza, e de certo modo inefável.

Institutas. IV.17.30.

Além do mais, precisamos cuidar para que não desloquemos as frases do reformador do contexto em que foram ditas. Por exemplo, Calvino estava se referindo à divindade de Jesus quando disse que

[…] a não ser que as almas liberadas dos cárceres dos corpos continuassem a existir, seria absurdo Cristo representar a alma de Lázaro a desfrutar de bem aventurança no seio de Abraão, e a alma do rico, por outro lado, destinada a horrendos tormentos [Lc 16.22, 23].

Institutas. II.13.4

É interessante o fato de que, sobre as passagens bíblicas em que Calvino mais deveria expor esse seu parecer, ele simplesmente nem toca no assunto. Por exemplo, sobre passagem em que Paulo diz que nosso corpo é o “santuário” (templo) do Espírito Santo (1Co 6.19), Calvino observa que

Há uma ênfase implícita no uso do termo templo, pois, visto que o Espírito de Deus não pode permanecer num ambiente impuro, só nos tornamos sua moradia quando nos consagramos como seus templos [Sl 132.14]. Que grande honra Deus nos confere em habitar em nós! Portanto, devemos viver em pleno temor a fim de não o expulsarmos, e ele, por sua vez, nos abandone, irado com nossos atos sacrílegos.

1 Coríntios. Ed. Parakletos, p. 195.

Também sobre o texto de Romanos 7.24, onde o apóstolo Paulo pergunta quem o livraria “do corpo desta morte”, Calvino comentou que

Pela expressão o corpo desta morte ele quer dizer a massa de pecado, ou as partes constituitivas que pervadem o homem todo, exceto que em seu caso só ficou um resquício de pecado, que o mantém cativo.

Romanos. Ed. Parakletos, p. 262.

Sobre Filipenses 1.23, onde Paulo expressa seu desejo de “partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor”, Calvino comenta apenas que se alguém desejar a morte, que seja para estar ao lado de Cristo. Ele vê esse tipo de desejo como absolutamente legítimo, diferenciando os crentes daqueles que não tem nenhuma esperança:

Pessoas profanas falam da morte como a destruição do homem, como se ele fosse completamente extingui-se. Paulo aqui nos lembra que a morte é a separação da alma do corpo. E isto ele expressa imediatamente depois, explicando com que condição esperam os crentes depois de morrerem – de estarem com Cristo.

Commentary on the Epistle to the Philippians. Books for the Ages. AGES Software, Albany, EUA, 1998. p. 34 – tradução minha.

[CONCLUSÃO]

Seria bem mais confortável para um calvinista concordar com as ideias de Platão somente para isentar Calvino de suas incongruências. Todavia, não foi este o caminho que resolvemos adotar aqui. O homem não é uma entidade bi ou tripartida (dicotomia x tricotomia), mas uma unidade psicossomática. Quando ressuscitarmos em glória, é certo que teremos um corpo incorruptível, porém material. Sendo assim, não posso concordar, por exemplo, que a alma é “mais nobre” que o corpo, somente porque ela é uma “substância incorpórea”, ao passo que o corpo não o é.

Como todo homem mortal, Calvino também laborou em erros. Mas isso não denigre de forma alguma a imagem de grande teólogo e homem de Deus que ele foi. Precisamos, como bons leitores, reconhecer ambas as coisas e estarmos sempre atentos ao fato de que somente as Escrituras é que são nossa regra de fé e prática. E que assim seja sempre.

Soli Deo Gloria!

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terça-feira, 13 de abril de 2010

Calvino e Platão – da relação entre o reformador e o filósofo

[No meu próximo post, esclarecerei o motivo deste de agora.]
Se algum tempo atrás alguém me dissesse que Calvino era simpático a algumas ideias de Platão, eu simplesmente não acreditaria. Isto porque, como a maioria dos evangélicos em nosso país, incluindo alguns reformados, fui orientado (para não dizer educado) a encarar com desprezo certos ensinos oriundos dos pensadores da antiguidade, especialmente dos “subversivos” e “perigosos” filósofos gregos.  E, mesmo crendo que “toda verdade é a verdade de Deus” (Agostinho), ainda que dita por boca de ímpios, sempre que podia eu procurava algum pretexto para condená-los em suas próprias teorias.

O fato, porém, é que Calvino era, sim, simpático a alguns pareceres de Platão. Mas isso equivale a dizer que Calvino era platônico, ou que sua teologia foi erigida sobre os pressupostos da filosofia grega, e não das Escrituras, como querem alguns? Nosso objetivo, aqui, é tentar esclarecer tais questões. Longe de ser exaustiva, minha breve pesquisa resumir-se-á aos escritos do reformador (das Institutas e seus comentários à Sagrada Escritura, basicamente), particularmente aos trechos em que ele faz alusões diretas ao referido filósofo.

Antes de tudo, porém, é interessante sabermos que grau de relevância Calvino dava aos pensadores não cristãos de um modo geral. Sobre a famosa citação que Paulo faz a Epimênides, poeta cretense (Tito 1.12: “Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos”), Calvino comenta que

“Desta passagem podemos inferir que é supersticioso recusar-se a fazer qualquer uso de autores seculares. Porque, visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porque o mesmo procede de Deus”.

(As pastorais. Ed. Fiel, 2009. pág. 318).

Depois de tal parecer, Calvino, de modo instigante, ainda indaga: “Além disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser corretamente usado dessa forma”? Ele não só defende o uso apropriado de autores seculares, mas vai além quando diz que toda verdade deve ser usada para a glória de Deus.

Como é evidente, Calvino via algum valor na filosofia e literatura seculares. Na própria Academia de Genebra, fundada por ele, estudavam-se autores gregos e latinos, dentre os quais encontram-se Homero, Heródoto, Xenofonte, Políbio, Demóstenes, Plutarco, Platão, Cícero, Virgílio e Ovídio, por exemplo. É bom lembrarmos também que Calvino era um humanista, tal qual Erasmo de Roterdã e Lutero, no que se refere a esse retorno aos clássicos gregos e latinos.  Isto explica porque ele era tão versado nesse tipo de literatura, e porque dominava tão bem as línguas consideradas clássicas – o grego e o latim. Aliás, antes mesmo de se converter, seu primeiro trabalho (publicado em 1532) foi um comentário ao livro De Clementia, de Sêneca, filósofo romano contemporâneo de Paulo, onde Calvino, escrevendo em latim, faz cerca de  oitenta citações a autores gregos e latinos[1].

Tendo, pois, averiguado brevemente o que Calvino pensava dos escritores pagãos de um modo geral, voltemo-nos, agora, à sua relação com Platão.

Há algumas coisas com as quais Calvino concorda com Platão. Sobre a imortalidade da alma, por exemplo, o reformador endossa o parecer do filósofo:

“Seria estulto buscar definição de alma da parte dos filósofos, dos quais quase nenhum, excetuando Platão, tem plenamente afirmado ser sua substância imortal. Certamente que também outros socráticos a abordam, todavia em moldes que ninguém claramente ensine de que ele próprio não foi persuadido. Por isso é que Platão tem opinião mais correta, já que contempla a imagem de Deus na alma”.

(Institutas – I.15.6).

Sobre como se deve orar, Calvino também apoia Platão:

“Como visse a imperícia dos homens na apresentação de seus rogos a Deus, os quais, se concedidos, muitas vezes lhes seria prejudicial, Platão declara que a melhor forma de orar é esta, apropriada de um poeta antigo: “Ó Rei Júpiter, confere-nos as coisas melhores, quer as desejemos, quer não; as coisas más, porém, ordena que fiquem longe de nós, ainda quando as peçamos”. E esse homem, na verdade pagão, nisto é sábio, porque sentencia quão perigoso é buscar do Senhor o que nossa cabeça haja ditado; ao mesmo tempo, põe à mostra nossa infelicidade, visto que, na realidade, nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm 8.26]”.

(Institutas – III.20.35).

Em seu comentário à Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, Calvino mais uma vez cita positivamente o filósofo. O assunto agora é sobre o poder da música:

“[…] todos sabemos, pela própria experiência, quão tremendo é o poder da música para agitar as emoções do ser humano; como corretamente ensina Platão, que de uma forma ou outra a música é da maior importância para moldar o caráter moral do Estado”.

(1 Coríntios. Ed. Parakletos, 2003. Pág. 419 – 1Co 14.7).

Contudo, não era sempre de forma simpática que Calvino tratava as ideias de Platão. Em certas ocasiões, Calvino o elogiava somente para, em seguida, apontar-lhe os erros. Por exemplo, referindo-se à miséria a qual todos nós estamos sujeitos, Calvino disse que

“Neste particular, quão prodigamente toda a ordem dos filósofos tem sua fatuidade e inépcia! Ora, para que poupemos aos demais, os quais muito mais absurdamente engendram despautérios, Platão, entre todos o mais religioso e particularmente sóbrio, também ele próprio se perde em seu globo esférico”.

(Institutas – I.5.11).

Em outras ocasiões, Calvino o critica direto, sem rodeios ou elogios, como por exemplo sobre o fato de Platão atribuir a pecaminosidade do homem à sua ignorância:

“Portanto, como foi Platão merecidamente censurado acima, uma vez que imputara à ignorância todos os pecados, assim também se deve repudiar a opinião daqueles que ensinam que em todos os pecados permeiam deliberadamente a maldade e perversidade”.

(Institutas – II.2.25).

Calvino chega até mesmo a falar explicitamente que Platão era, no fim das contas, um mero pagão; perdido; sem Deus.

“Os filósofos disputaram outrora, ansiosamente, sobre o supremo fim das boas coisas, e até entre si contenderam, contudo, ninguém, exceto Platão, reconheceu que o sumo bem do homem é sua união com Deus. De que natureza, porém, fosse esta união, nem sequer tênue gosto pôde ele sentir. Nem é de admirar, uma vez que nada aprendera do sagrado vínculo dessa união”.

(Institutas – III.15.2).

Para Calvino, o fato de Platão ter falado coisas fantásticas e até mesmo doutrinariamente coerentes com o todo da Verdade revelada nas Escrituras não foi suficiente para uni-lo a Deus. Note que Calvino não fala de união com Cristo, e sim, de união com Deus, uma vez que Cristo e Platão não foram contemporâneos. Quando Calvino fala sobre a “natureza” dessa união, penso que ele esteja se referindo a Cristo como nosso mediador, visto que, para o reformador, a união mística de Cristo com a sua Igreja é o fundamento da real e verdadeira comunhão com o Pai. É por isso mesmo que o reformador não alivia: de tudo que escreveu e ensinou, e de todas a suas divagações filosóficas, ainda que louváveis em alguns aspectos, Platão “nada” aprendeu da genuína união com o Criador. Penso que esta declaração de Calvino é suficiente para derrubar de uma vez por todas as acusações de que ele era um admirador cego do filósofo grego.

No fim das contas, verifica-se que o que Calvino entendia ser o supremo e fidedigno depósito da Verdade, bem como o único livro capaz de nos fazer despertar de nossa letargia espiritual, era mesmo a Sagrada Escritura, por mais valor tivessem os escritos dos sábios da antiguidade.

“Admito que a leitura de Demóstenes ou Cícero, de Platão ou Aristóteles, ou de qualquer outro da classe deles, nos atrai maravilhosamente, nos deleita e nos comove ao ponto de nos arrebatar. Mas quando deles nos transferimos para a leitura das Escrituras Sagradas, queiramos ou não, elas nos despertam tão vivamente, penetram de tal modo o nosso coração e de tal maneira se fixam em nossa medula, que toda a força dos retóricos e dos filósofos se evapora, em comparação com a eficácia das Escrituras no sentimento que nos infundem. […] De longe essa qualidade [das Escrituras] supera todas as virtudes da criatividade humana”.

(As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, [I.24] Vol. I. pág. 74).

Penso que nossa breve pesquisa mostrou-se suficiente para constatarmos uma coisa: que o pensamento teológico de Calvino não se estruturou a partir da obra de Platão nem de qualquer outro pensador profano, como pretendem alguns, mas unicamente da Palavra de Deus. Se o que Platão falava se coadunava com as Escrituras, Calvino o apoiava; se não, como vimos, o rejeitava. A Verdade não depende do endosso humano. Como bem atesta o reformador, “a verdade está livre de toda dúvida, visto que, sem nenhuma ajuda, ela é suficiente para manter-se” (Institutas. Ed. Especial. pág. 74). Que Deus nos ajude a pensar o mesmo.

Soli Deo Gloria!


[1] O livro, entretanto, não deu a Calvino o feedback que ele esperava. Usando um linguajar moderno, praticamente não saiu das prateleiras.

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terça-feira, 6 de abril de 2010

Dois espiões demais

Todos nós (ou, pelo menos, a maior parte) conhecemos a famosa história dos doze espias que Moisés, por ordem de Deus, enviou à terra de Canaã. O livro de Números dá nome aos bois, ou melhor, aos espiões: Samua, Safate, Calebe, Jigeal, Oséias (a quem Moisés depois chamou de Josué), Palti, Gadiel, Gadi, Amiel, Setur, Nabi e Geuel (Nm 13.1-16). O relatório requerido por Moisés consistia de basicamente quatro itens (Nm 13.18-20): 1) o tipo de terreno (“vede a terra, que tal é”) e seu nível de hostilidade (“se é boa [a terra] ou má”) aos israelitas; 2) o potencial bélico (“se é forte ou fraco”) e o número (“se poucos ou muitos”) de seus habitantes; 3) o tipo de instalação – o que no Exército chamamos de “fortificações de campanha” – que os habitantes locais ocupavam ( “se em arraiais, se em fortalezas”); e 4) a qualidade do solo (“se é fértil, se é estéril, se nela [na terra] há matas ou não”).

Os espias fizeram como Moisés mandara: saíram do deserto de Parã e “subiram e espiaram a terra desde o deserto de Zim até Reobe, à entrada de Hamate. E subiram pelo Neguebe e vieram até Hebrom […]. Depois, vieram até ao vale de Escol e dali cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas, o qual trouxeram dois homens numa vara, como também romãs e figos” (Nm 13.21-23). O itinerário, meticulosamente escolhido, possibilitou aos espias que se furtassem à observação inimiga. E ainda deu até para trazer alguns frutos da terra! Ou seja, taticamente falando, eles foram impecáveis (não no sentido teológico da palavra).

Porém, o relatório de quarenta dias de espionagem em terra alheia não foi tão “impecável” assim. Aliás, é bom que se diga que foi um relatório extremamente pecável (agora sim, no sentido teológico do termo). O que acontece é que simplesmente dez dos doze espias eram incrédulos. Senão, vejamos:

Relataram a Moisés e disseram: Fomos à terra que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel; este é o fruto dela. O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades, mui grandes e fortificadas; também vimos ali os filhos de Anaque. Os amalequitas habitam a terra do Neguebe; os heteus, os jebuseus e os amorreus habitam na montanha; os cananeus habitam ao pé do mar e pela ribeira do Jordão (Nm 13.27-29 – itálico meu).

Como a memória desse povo era curta! Deus acabara de libertá-los do Egito e eles não lembravam mais! Não se trata de “amnésia” não, meus caros – é incredulidade mesmo! Mas, eis que surge em cena um “espião demais” – Calebe, filho de Jefoné. A despeito do relatório pessimista e incrédulo dos dez, ele retrucou: “Eia! Subamos e possuamos a terra, porque, certamente, prevaleceremos contra ela” (Nm 13.30). Mas não adiantou. “Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós”, replicaram os dez. E continuaram nesse ritmo, dizendo coisas do tipo “aquela terra lá devora seus moradores”, “ali moram gigantes”, “somos como meros gafanhotos aos olhos deles”, etc, etc, etc (Nm 13.31-33).

Resultado: o povo se desesperou. Quem ficaria tranquilo após receber notícias tão “animadoras” como essas? “Tomara tivéssemos morrido na terra do Egito ou mesmo nesse deserto” – era o desejo da multidão de israelitas desesperados (Nm 14.2). Sim, os hebreus desejaram ardentemente voltar para a terra de Faraó. Inclusive, foi até cogitada a ideia de nomear-se um capitão para levá-los de volta para lá (14.4). Isso foi a gota d’água para Moisés. Ele e Arão caíram prostrados sobre o próprio rosto perante toda a congregação. E agora, José, ops!, Moisés? O que fazer?

Eis que surge em cena o outro “espião demais” – Josué, filho de Num, da tribo de Judá e tipo de Cristo. Depois de rasgar as vestes em face de tão grande gesto de incredulidade e ingratidão cometido pelo povo, ele se levanta, juntamente com Calebe, e diz ao povo que a terra que eles haviam espiado não é ruim coisíssima nenhuma, mas é terra “muitíssimo boa”. Ele também diz que a herança da terra dependerá do agrado de Deus em lhes dá-la, e que, quanto aos gigantes, os israelitas os devorariam “como pão”. Tudo isso só seria possível porque o Senhor era com eles (14.6-9). Ainda assim, mesmo com todas essas palavras de ânimo, o povo sugeriu que os “dois espiões demais” fossem apedrejados. “Porém, a glória do SENHOR apareceu na tenda da congregação a todos os filhos de Israel” (14.10 – itálico meu), impedindo-os de cometerem tal loucura.

O final da história já conhecemos: os dez espias incrédulos não viram (herdaram) a terra que o Senhor havia prometido. E mais: para cada dia que passaram espiando a terra, o Senhor lhes acrescentou em anos de peregrinação no deserto. Ou seja, quarenta dias = quarenta anos (Nm 14.22, 34). Josué e Calebe também peregrinaram os quarenta anos com o povo no deserto, mas o final deles foi feliz. Josué, tipificando a Cristo (Libertador), sucedeu a Moisés na conquista da Canaã. E Calebe, já com a idade de aproximadamente cento e vinte anos, tomou a Hebrom por herança, já com Josué à frente do povo (Js 14.13, 14).

A história desses “dois espiões demais” pode nos ensinar muitas coisas. Não me refiro à arte da espionagem (inteligência, contra-inteligência, etc.), e sim, à arte da fé incondicional e irrestrita no Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Como o próprio apóstolo Paulo mesmo fala aos cristãos de Corinto, certos episódios da história dos hebreus nos servem de exemplo (1Co 10.1-13). Podemos e iremos encontrar muitos obstáculos que visam nos impedir de chegar à nossa Canaã celestial. Contudo, não esmoreçamos: perto de uma fé genuína e inabalável, os “gigantes” redundam-se em nada!

Soli Deo Gloria!

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