sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A verdade sobre a mentira (parte 2) - Gnosticismo Antigo e Contemporâneo (1)

O Gnosticismo Antigo


“Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?” (João, o apóstolo – 1Jo 2.22).



“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, as próprias heresias são equipadas pela filosofia”[1]. Foi dessa forma que Tertuliano (160-240 d.C.) ligou a filosofia de seu tempo ao seu “filhote religioso” mais ilustre, o Gnosticismo, um amalgamado de filosofia pagã, esoterismo mitológico e elementos da doutrina apostólica que veio para tentar apagar o evangelho legado por Cristo e seus apóstolos da memória da Igreja. Dado o extremo grau de periculosidade que esse movimento representou para a manutenção da ortodoxia nas fileiras do cristianismo, não seria nenhum exagero afirmar que, de todas as heresias (“mentiras teológicas”) que a igreja primitiva teve que enfrentar, o Gnosticismo foi, sem sombra de dúvidas, a pior.

Definir o que foi o Gnosticismo não é uma tarefa fácil, mas vamos tentar, em princípio, nos deter a algumas de suas designações mais genéricas. Gnosticismo é um termo que deriva da palavra grega gnosis, que significa, literalmente, “conhecimento”. Para os gnósticos, a verdade é secreta, e somente é revelada a algumas pessoas detentoras de um “conhecimento” especial (daí o porquê do termo). A salvação da alma consiste exatamente em descobrir qual é essa “verdade”, voltando-se o indivíduo para dentro de si mesmo em busca de suas origens. Essa característica aproxima o gnosticismo do neoplatonismo, na sua busca de tentar restabelecer a união com a divindade a partir de uma interiorização contemplativa. Os gnósticos elaboraram uma teogonia[2] extremamente complexa a fim de explicar a origem do universo, incorrendo numa cosmovisão puramente dualista (Bem x Mal). Segundo eles, o Supremo e Verdadeiro Deus transcendente e último (não cognoscível), que habita acima dos universos criados, fez emanar de si mesmo todas as substâncias visíveis e invisíveis existentes no mundo. Dessas emanações vieram os éons, que eram seres divinos intermediários entre o Supremo Deus e nós. Um desses seres eônicos, chamado Sofia, teria feito emanar de si mesmo o deus (também chamado de “Demiurgo”) que criou o mundo material e psíquico, à imagem da sua própria imperfeição. Este deus (que é identificado com o Deus do Antigo Testamento), então, passou a pensar que era o próprio Deus Supremo, incorrendo em orgulho. É dessa forma que o gnosticismo explica as mazelas do mundo, bem como toda a corrupção deste, concluindo, com isso, que toda matéria é inerentemente má. É no meio de toda essa confusão que os gnósticos unem elementos da filosofia pagã e do misticismo esotérico das religiões de mistério para fazerem uma verdadeira “salada” mística e religiosa.

Ao contrário do que muita gente pensa, essa filosofia não nasceu dentro do cristianismo. Suas origens remontam às antigas tradições persas e babilônicas antes mesmo de Cristo ter nascido. Mas o grande problema para nós foi quando, tendo surgido o cristianismo, alguns cristãos presumiram que poderiam aliar as crenças gnósticas às doutrinas apostólicas, numa “tentativa de explicar Cristo em termos da filosofia pagã ou da ‘teosofia’”[3]. Isso resultou num verdadeiro desastre para a Igreja, uma mancha terrível na história do povo de Deus[4]. As ideias gnósticas passaram a fazer parte da dieta doutrinária de muitos grupos ditos cristãos, que já não sabiam mais delinear marcos entre a ortodoxia e a heresia. A habilidade dos mestres gnósticos em sintetizar noções gnósticas com conceitos cristãos, pegando emprestado destes algumas de suas terminologias, fez com que o próprio evangelho fosse redefinido, ainda que este se mostrasse totalmente pagão em eu âmago. Muitos passaram a ensinar que Jesus era um “éon” que se desviou astuciosamente do mundo das trevas para trazer esse “conhecimento” secreto (a gnosis), proporcionando aos espíritos da luz, que habitam nos seres humanos, a plena liberdade do cativeiro do mundo terreno e material. A doutrina apostólica, então, passou a ser mais um elemento a compor a “salada” gnóstica, que agora passou a autodenominar-se de “cristã”, o que fez com que o nome do Gnosticismo se associasse ao do Cristianismo até aos dias atuais (contudo, é bom que fique bastante claro que não havia um “cristianismo gnóstico”, como muitos estudiosos de história antiga o querem, e sim, um “gnosticismo cristão”).

Entretanto, essas simples definições e conceitos não são capazes de abranger todas as vertentes, modalidades e nuances próprias do gnosticismo que se instalou no seio da Igreja. O Gnosticismo, como um sistema de crenças, não era homogêneo. Havia uma ampla diversidade dentro do próprio movimento, já que “o pensamento gnóstico oferecia possibilidades para os ‘inventores’ de religiões, nas quais cada falso mestre podia inventar sua própria seita”[5]. Irineu (c. 180), bispo de Lyon, na Gália Romana, fala em pelo menos quatro tipos de gnosticismo existentes em seus dias: 1) Gnosticismo de tipo sírio (Saturnino); 2) Gnosticismo de tipo egípcio (Basílides, Valentino); Gnosticismo de tipo judaizante (Cerinto e os ebionitas); e 4) Gnosticismo de tipo pôntico (Márcion)[6]. Cada uma dessas variantes tinha suas próprias particularidades (sobre as quais não pretendemos entrar em detalhes agora). Uma coisa interessante é que, quando as premissas gnósticas conflitavam grosseiramente com as doutrinas apostólicas, os gnósticos “inventavam” suas próprias versões do evangelho. E o pior de tudo é que eles “assinavam” o documento como se o mesmo fosse de autoria dos apóstolos. Até a metade do século vinte, esses “evangelhos” somente eram conhecidos por nós através das obras polêmicas de seus críticos mais vorazes, como Irineu (130-200) em Contra as Heresias e Tertuliano (160-225) em Contra Márcion. Foi quando, em 1945, uma “biblioteca gnóstica” foi encontrada em Nag Hammadi, no Egito, contendo alguns manuscritos dos evangelhos gnósticos, como por exemplo, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, o Evangelho dos Egípcios e o Evangelho da Verdade. Esses “evangelhos” não visavam apenas a “‘preencher’ supostas lacunas nas informações dos canônicos (como, por exemplo, sobre a infância de Jesus), mas [...] apresentar versões diferentes dos fatos e pessoas retratados nesses evangelhos”[7]. Um bom exemplo desses “evangelhos” que procuravam redefinir o papel de alguns dos personagens tidos como os “vilões” da história é o famoso Evangelho de Judas (descoberto na caverna de El Mynia, no deserto do Egito, em 1978), no qual Judas, apresentado nos Evangelhos canônicos como um traidor, é redefinido como o único que realmente compreendeu a mensagem “secreta” que o Mestre veio trazer. Desse modo, Judas é transformado no “herói” da história, demolindo toda a sua tradicional fama de vilão. Embora sua descoberta tenha se dado tão recentemente, Irineu já fazia referências a ele na sua obra Contra as Heresias (Livro I, 31.1 – lá aparecem também uns tais de “cainitas”, uma seita que inocentava a Caim). E não apenas Irineu, mas todos os tratados polemistas asseveram que o gnosticismo foi um movimento marginal ao cristianismo, e não integrante deste; um intruso, e não um convidado; um “corpo estranho”, e não um órgão; uma gangrena que precisava ser removida às pressas, numa intervenção cirúrgica habilidosa.

Mas não devemos pensar que foi apenas no período pós-apostólico que essa heresia surgiu, não. Há claros indícios, a partir do próprio Novo Testamento, que a igreja neotestamentária enfrentou em suas fileiras uma forma incipiente de gnosticismo. Tertuliano afirma que Paulo tinha em mente a filosofia gnóstica quando advertiu aos cristãos colossenses para que estes tomassem cuidado com certas “filosofias e vãs sutilezas, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo” (Cl 2.8)[8]. Sugere-se que os hereges de Colossos estavam unindo elementos judaicos, crenças populares da Frigia e “germens” de gnosticismo ao evangelho, promovendo um verdadeiro sincretismo religioso, o que lhes rendeu a pecha de “heresia colossense” – um sistema de crenças absolutamente estranho. É possível também que sejam essas as “fábulas” e “genealogias sem fim” que Paulo fala aos jovens pastores Timóteo (1Tm 1.4) e Tito (Tt 1.14), sobre as quais eles deveriam tomar o máximo de cuidado. Ainda que não nos seja possível fazer uma absoluta associação desses erros com o gnosticismo, devemos pelo menos reconhecer certos pontos de semelhança entre eles.

Contudo, as principais evidências da infiltração gnóstica na igreja neotestamentária encontram-se nos escritos do apóstolo João, especialmente nas suas cartas. Nelas, o apóstolo nos dá algumas informações do tipo de gnosticismo que a igreja de então estava enfrentando. A principal acusação de João contra os ensinos heréticos era que “muitos enganadores tem saído ao mundo, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (2Jo 7 – ênfase minha). Na realidade, essa negação da encarnação de Jesus é uma doutrina gnóstica que ficou conhecida depois como Docetismo (do grego dokeo – lit. “parecer”, “aparência”). Essa variante gnóstica ensinava que todas as manifestações da natureza humana de Jesus eram apenas uma aparência, uma ilusão de ótica (uma espécie de holograma). Sendo assim, seguindo a premissa gnóstica básica de que a matéria é essencialmente má, os falsos mestres, além de negarem a humanidade de Jesus (encarnação), negavam também a própria crucificação e ressurreição deste, atribuindo tudo a uma mera ilusão, já que Deus não poderia ter assumido a forma humana, em Jesus. João também nos informa que os hereges, de igual modo, negavam a divindade de Jesus. Essa outra variante gnóstica pode ser atribuída a um homem chamado Cerinto, que residia em Éfeso e foi, inclusive, contemporâneo (e possível adversário) do próprio João. De acordo com Irineu, um polemista do segundo século, Cerinto “representava Jesus como não tendo nascido de uma virgem, mas como sendo filho de José e Maria segundo o curso comum da geração humana, enquanto que era, não obstante, mais justo prudente e sábio do que os outros homens. Além disso, depois do seu batismo, Cristo desceu sobre ele, em forma de pomba, vindo do Supremo Regente, e que depois proclamou o desconhecido Pai, e realizou milagres. Mas por fim Cristo separou-se de Jesus, e então Jesus sofreu e ressuscitou, enquanto Cristo permaneceu impassível [isto é, “não sujeito a dor ou ferimento”], visto que era um ser espiritual”[9]. A ideia de Cerinto sugere que Jesus não era verdadeiramente Deus, mas que foi habitado pelo Cristo, uma emanação do éon divino que desceu sobre o homem Jesus. Esse Cristo veio sobre Jesus por ocasião do seu batismo, mas o deixou por ocasião da sua crucificação. Isso faz com que a divindade de Jesus seja algo imposto, vindo de fora, e não inerente a ele. Esse pensamento de Cerinto foi aderido pelos Ebionitas[10], uma seita gnóstica de tipo judaizante do fim do primeiro século. Para João, contudo, tanto a negação da encarnação quanto da divindade de Jesus constitui-se em verdadeira mentira teológica. Uma das definições que o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa dá para mentira é “aquilo [...] que se aproxima da verdade ou é real apenas na aparência” (ênfase minha). João concordaria plenamente com essa definição. Se Cristo era apenas uma “aparência”, como queriam os docetistas, então o próprio Deus era um mentiroso, e Jesus, uma mentira; se Jesus não tinha um corpo físico, então ele não foi para a cruz para morrer pelos nossos pecados, muito menos ressuscitou para a nossa justificação (cf. Rm 4.25). Por este motivo, para o apóstolo João qualquer coisa que se aproxime da verdade, mas que não seja exatamente a Verdade, não passa de pura mentira; qualquer um que negue que Jesus é o Cristo (plenamente humano e plenamente divino) é um mentiroso (1Jo 2.22).

As fortes ênfases joaninas à retidão do viver cristão em oposição às dissoluções carnais sugerem que esses falsos mestres também ensinavam que o cristão poderia pecar à vontade, pois não fazia diferença alguma, visto que a carne má. O apóstolo combate essa ideia com veemência, dizendo que “todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus” (1Jo 3.9 – ênfase minha). Outra característica desses falsos mestres era a sua flagrante falta de amor para com os outros irmãos, uma vez que o acesso às verdades espirituais (a “gnose”) pertencia somente aos “iluminados”. Isto posto, duas categorias de crentes foram criadas: a dos “iluminados” e a dos “não-iluminados”. João combate essa falácia ao dizer que “se [...] andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7 – ênfase minha). O apóstolo é mais enfático ainda quando diz que “se alguém disser: Amo a Deus, e odiar seu irmão, é mentiroso, pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4.20 – ênfase minha). João é tão vigoroso em seu combate ao erro que ele adverte a um grupo de cristãos a não receber em suas casas qualquer um que não traz a sã doutrina, muito menos dar-lhes as boas-vindas, “porquanto aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das duas obras más” (2Jo 10,11). Quanto a isso, Irineu, em sua conhecida obra Contras as Heresias, no livro III, nos traz um episódio interessante envolvendo João e Cerinto, contado por Policarpo, bispo de Esmirna e discípulo de João: “E há quem o tenham ouvido dizer que João, o discípulo do Senhor, indo banhar-se em Éfeso e tendo visto Cerinto nos banhos, saltou para fora das termas sem ter-se banhado e disse: ‘Fujamos, não ocorra que também as termas venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade’”[11]. O zelo que João nutria pela verdade legou para os cristãos subseqüentes a munição necessária para que o erro religioso fosse combatido.

De fato, a heresia gnóstica teve que mover um verdadeiro arsenal de defensores da ortodoxia: os polemistas[12]. Inácio de Antioquia, Irineu, Justino, o mártir, Tertuliano e Hipólito foram alguns deles. Não era fácil combater os mestres gnósticos, pois, além de eles serem ótimos debatedores, o próprio gnosticismo, como já vimos, era bastante diversificado. Alguém comparou o gnosticismo à Hidra, um monstro (serpente) mitológico que tinha várias cabeças. Quando se cortava uma, nascia outra em seu lugar. Assim era o gnosticismo dos primeiros séculos. Por essa razão, essa heresia, enquanto sistema, não era fácil de ser refutada, uma vez que suas premissas possibilitavam aos inventores de religião criar o seu próprio “gnosticismo” com os elementos que preferissem. Dentre os principais mestres gnósticos estavam Saturnino (c.120); Basílides (c. 130); Valentino (c. 140), seu sucessor; Carpócrates; Cerinto; e Cerdon, dentre outros[13]. Mas nenhum deles, talvez, tenha chegado aos pés de um homem natural do Ponto, chamado Márcion (c. 160), sucessor de Cerdon. Dentre os mestres gnósticos ele foi, sem sombra de dúvidas, um dos maiores inimigos do cristianismo. Alguns chegam até a afirmar que, se havia alguém capaz de aniquilar o cristianismo nos primeiros séculos, esse alguém era Márcion. Irineu dedica boa parte da sua obra Contra as Heresias no combate a esse falso mestre, acusando-o de, por exemplo, mutilar o Evangelho de Lucas, “rejeitando narrativas referentes ao nascimento do Senhor”, uma vez que era docetista. Márcion também, segundo Irineu, mutilou as cartas de Paulo, “eliminando delas tudo que declara ser o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo o Deus que fez o mundo, bem como o ensino dos profetas anunciando o advento de nosso Senhor”. Ele estava criando o seu próprio cânon, o que forçou a Igreja a delimitar e reconhecer quais eram os livros verdadeiramente inspirados. Além disso, ele “persuadiu seus discípulos de que merecia mais crédito do que os apóstolos que legaram o Evangelho”[14]. Inácio de Antioquia também parece combater os ensinos de Márcion quando adverte os cristãos de sua época: “Torna-te surdo, quando te falam de um Jesus Cristo fora daquele que foi da família de Davi, filho de Maria, nasceu autenticamente, comeu e bebeu, padeceu verdadeiramente sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado e morreu verdadeiramente... De que me valeria estar em cadeias, se Cristo sofreu somente na aparência, como certos pretendem? Esses, sim, não passam de meras aparências”[15]. A pergunta feita por Inácio ecoa o mesmo argumento que Paulo havia exposto aos coríntios: “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a nossa fé” (1Co 15.14). Outro polemista importante, Tertuliano, afirma que Márcion herdou o “bom deus” sossegado dos estóicos, uma vez que Márcion cria que o deus do Antigo Testamento é mau, cruel e imperfeito. Por este motivo ele se negava a identificar o deus veterotestamentário com o Deus do Novo Testamento que, segundo ele, era o verdadeiro Pai de Jesus. Tertuliano ainda afirma que “quando Márcion afirma que a alma perece, obedece a Epicuro; quando nega a ressurreição da carne, segue o parecer de uma dentre todas as filosofias; quando confunde matéria e Deus, repete a lição de Zenon; quando alude a um deus de fogo, torna-se aluno de Heráclito”[16]. Toda essa série de coisas fez com que Márcion se tornasse a persona non grata mais eminente dentre os hereges de sua época. Isso é atestado por uma ocasião em que ele, ao topar com Policarpo, perguntou-lhe: “Reconheces quem eu sou?”, ao que Policarpo respondeu: “Reconheço. És o primogênito de Satanás”[17]. Decerto, havia muitos outros hereges gnósticos altamente perigosos, mas entrar em detalhes sobre a vida de cada um nos exigiria uma investigação mais intensa (e extensa).

A influência gnóstica foi realmente uma praga dentro da Igreja, pois sua filosofia serviu de base para todas as outras heresias que surgiriam logo em seguida, principalmente àquelas que envolviam a Pessoa de Cristo e a Trindade[18]. Mas isso foi, de certa forma, bom, porque foi ali que a Igreja começou a cerrar fileiras e a fazer algumas definições teológicas importantes, como aconteceu nos concílios de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedônia (451), por exemplo. As heresias, num certo sentido, “ajudaram” a Igreja na formulação dos credos mais importantes do cristianismo, como o famoso Credo Apostólico. Como bom calvinista, penso que tudo foi providencial. É claro que não podemos cair no erro de “louvar” os hereges por isso, mas também devemos reconhecer o que de positivo tudo isso trouxe à fé cristã de um modo geral.

Como deve ter ficado mais do que evidente em nossa breve pesquisa, o gnosticismo é totalmente incompatível com a doutrina dos apóstolos e, por extensão, com todo o restante das Escrituras. As tentativas de se conciliar as duas partes não passam de teimosia incrédula. Os mestres gnósticos não estavam atacando apenas pontos “periféricos” do evangelho, e sim, o próprio cerne dele: a Cruz de Cristo. Sem a cruz não há Cristo; sem a cruz não há ressurreição; sem a cruz não há justificação; sem a cruz não há redenção; em suma, sem a cruz não há evangelho. Os gnósticos, a exemplo de muitas pessoas hoje, queriam chegar a Deus sem Cristo; queriam a salvação sem a cruz. Mas o esforço desses hereges não foi suficiente para aniquilar a cruz, pois o próprio Cristo havia prometido que “as portas do inferno” não prevaleceriam contra a sua Igreja (Mt 16.18). A ortodoxia, a despeito dos fortes ataques que sofreu, se manteve de pé. Entretanto, os rastros do antigo gnosticismo perduraram, chegando até aos dias de hoje por diversos meios e de diversas formas e nomes, continuando a incomodar a Igreja militante de Cristo aqui na terra. A mentira ainda ronda por aí. Mas esse é um assunto para uma próxima conversa.

Continua na próxima postagem da série “A verdade sobre a mentira”, se Deus permitir.


Soli Deo Gloria!

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[1] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 32).
[2] “Doutrina concernente à origem dos deuses, quase sempre relacionada com a formação do mundo” (verbete Teogonia, do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Larousse – versão eletrônica).
[3] H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. Aste, SP, 1998. Págs. 77.
[4] Uma tradição antiga atribui a Simão, o mago samaritano sobre o qual Lucas relata em Atos 8.9-25, a responsabilidade pela introdução do gnosticismo no cristianismo (cf. Eusébio de Cesaréia. História Eclesiástica. Livro IV, cap. 22.5).
[5] MacArthur, John. Guerra pela verdade. Editora Fiel, 2008. Pág. 121.
[6] Irineu. Adversus Haeresis. Na realidade, Irineu não fala explicitamente em quatro tipos de gnosticismo. Isso foi deduzido por Henry Bettenson, a partir da obra de Irineu Contra as Heresias (H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. Aste, SP, 1998. Pág. 77-80).
[7] Ver Santos, João Alves dos. Cristianismo e Gnosticismo: uma avaliação de sua incompatibilidade ao ensejo da publicação do “Evangelho de Judas”. Revista Fides Reformata XI, nº 1 (2006). Págs. 53, 54.
[8] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 33).
[9] Adversus Haeresis. XXVIII. 1. Citado por John Stott em I, II e III João – introdução e comentário. Edições Vida Nova, 1982. Pág. 41.
[10] Para mais detalhes, ver Eusébio de Cesaréia em História Eclesiástica. Livro II, cap. XXVII.1-6.
[11] História Eclesiástica. Livro IV, cap. 14.6.
[12] “Polemista” difere de “Apologista” pelo fato de que os polemistas defendiam a fé dos ataques internos (dos hereges), ao passo que os apologistas, dos ataques externos (dos pagãos, agnósticos etc.).
[13] Para uma lista mais completa, ver História Eclesiástica. Livro IV.
[14] Irineu. Contra as Heresias. I.XXVII.2-3. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Págs. 80-81).
[15] Inácio. Ad Trall. IX-X. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 77).
[16] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 33).
[17] Idem. Livro IV, cap. 14.7.
[18] Como o Arianismo, o Monarquianismo (Patripassionista e Sabeliano), o Apolinarismo, o Nestorianismo e o Eutiquianismo, por exemplo, além do Montanismo, que Tertuliano veio abraçar depois.

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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A verdade sobre a mentira (parte 1) – “A mentira sobre a Verdade”

Tertuliano estava coberto de razão quando disse que “o demônio tem lutado contra a verdade de muitas maneiras, inclusive defendendo-a para melhor destruí-la” [1]. Na ocasião, ele estava em defesa da ortodoxia em meio a uma controvérsia cristológica, em meados do século III, onde muitos inimigos da cruz lançavam mão da própria Verdade para negar tanto a plena divindade quanto a plena humanidade de Cristo. Não era uma discussão sobre a forma de batismo ou governo da igreja; sobre usos e costumes ou a guarda de dias sagrados – era o próprio cerne do Evangelho que estava em jogo. Os falsos mestres estavam contando mentiras sobre a Verdade, levando muitas vidas à completa ruína eterna.

Na realidade, a assertiva de Tertuliano remonta aos primórdios da humanidade, ao Éden. Ali, vemos entrar em ação o especialista par excellence na arte de perverter a Verdade. O homem vivia em comunhão com a Verdade (Deus), até o dia em que a Mentira (Satanás) desviou-lhe do caminho, cegando-lhe o entendimento. A Serpente, após ter questionado a Verdade da Palavra de Deus, torceu-a por completo, ao dizer à mulher: “é certo que não morrerás” (Gn 3.1-4). E, depois de questionar e torcer a verdade, a Serpente inventa uma versão “alternativa” dela: “Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5 – itálico meu). Esse engodo maligno resultou na Queda da raça humana, trazendo-lhe conseqüências terríveis. Ainda no livro de Gênesis, temos uma pequena mostra de como isso foi trágico. O primeiro assassinato da história humana foi mediado pela mentira. Caim chamou seu irmão Abel para ir ao campo com o único propósito de matá-lo (Gn 4.8). Abraão, o “pai da fé”, utilizou-se da mentira para se safar da morte, quando esteve no Egito, causando maldição àquela terra (Gn 12.10-20). Os irmãos de José, depois de terem-no vendido, molharam sua túnica com sangue de bode, para que seu pai, Jacó, pensasse que José havia sido comido por feras selvagens (Gn 37.29-35). A mulher do faraó egípcio Potifar, ao ser rejeitada por José, quando o tentava, disse a seu marido que foi José quem tentou agarrá-la, causando a prisão deste (Gn 39.7-20). A tragédia nesses exemplos está justamente no fato de que a mentira angariou credibilidade em detrimento da verdade.

Nos evangelhos, notamos como Jesus lidou com essa questão. Durante seu ministério aqui na terra, ele se deparou com alguns judeus que tentavam torcer a verdade a seu favor, dizendo que tinham por pai a Abraão e, por conseguinte, a Deus (Jo 8.39-41). Jesus foi inexoravelmente incisivo com eles, dizendo-lhes que, na realidade, eles eram filhos do diabo, o “pai da mentira” (Jo 8.44). Jesus não se utilizou de eufemismos para amenizar a real condição daqueles que vivem subvertendo a verdade da Palavra de Deus. Quando Jesus estava para ser julgado, “os principais sacerdotes e todo o Sinédrio” procuravam um testemunho falso (pseudomartys) contra ele, “a fim de o condenarem à morte” (Mt 26.59). Dentre as muitas falsas testemunhas que havia, apenas duas decidiram comparecer ao tribunal. Aliás, segundo o que prescrevia a Lei, seriam necessárias no mínimo duas testemunhas no caso de se requerer a pena de morte a alguém (Nm 35.30; Dt 17.6; 19.15ss). A acusação delas foi a seguinte: “Este [ou seja, Jesus] disse: Posso destruir o santuário de Deus e reedificá-lo em três dias” (Mt 26.61). Ora, se formos ler o que Jesus disse em João 2.19 (“Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”) veremos que a informação daquelas pessoas procedia. Entretanto, o que faz delas falsas e mentirosas é justamente o fato de usarem um aspecto da verdade contra A Verdade! Elas, além de não haverem compreendido o que Jesus quis dizer com “destruir o santuário”, incorreram na violação do nono mandamento: “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êx 20.16), tornando-se, com isso, passíveis da punição divina (se bem que já o eram desde o ventre!). A mentira é inimiga mortal da Cruz.

Para o apóstolo Paulo, tudo o que a mente humana não-regenerada pensa e fala acerca da Verdade é mentira, ainda que o homem conserve lampejos da imago Dei (cf. At 17.28 e todo o contexto). Aliás, para o apóstolo, a raiz da idolatria está justamente no fato de que os homens “mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador” (Rm 1.25). Paulo está escrevendo num contexto em que ele atrela a idolatria humana à sua natureza corrupta. Quando se é corrupto por natureza, a deturpação de toda e qualquer noção de verdade é deliberada. Essa verdade já havia sido ecoada pelo salmista Davi, quando disse que “desviam-se os ímpios desde a sua concepção; nascem e já se desencaminham, proferindo mentiras” (Sl 58.3 – itálico meu). É por esse motivo que Paulo instrui os cristãos de Éfeso a deixarem a mentira (Ef 4.25), revestindo-se do “novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.24 – itálico meu). Paulo ainda nos mostra algumas ramificações da mentira. Ele nos fala em “falsos irmãos” (pseudadelphos – 2Co 11.26; Gl 2.4); “falsos apóstolos” (pseudapostolos – 2Co 11.13); e daqueles que vivem “falando mentiras” (pseudologos – 1Tm 4.2). Esses tais são emissários de Satanás, que se passam por ministros de Cristo e da justiça (2Co 11.13-15). Como é de se notar, o maior perigo não está fora da igreja, e sim, dentro dela, por conta dos lobos disfarçados de ovelhas que se infiltram sorrateiramente nos arraiais. Pedro (2Pe 2.1) e João (1Jo 4.1) também alertam a seus destinatários sobre o perigo desses “falsos profetas” (pseudoprophetes).

A mentira atravessou os séculos e chegou até aqui intacta. A diferença é que ela só mudou de roupa. Se a igreja primitiva, que ainda estava sob a tutela dos apóstolos sofria desse mal, o que dizer da igreja do século XXI, na qual o próprio conceito de uma única Verdade é rechaçado? Qualquer um que hoje defenda a existência de uma verdade única logo é taxado de intolerante, fundamentalista e intransigente. Isso explica a confusão doutrinária que se estabeleceu em nosso meio. Há uma gama enorme de sofismas pós-modernos que são aceitos como verdade em muitos círculos ditos cristãos. E o resultado disso é que a Verdade tem sido deliberadamente subvertida a fim de endossar práticas e doutrinas totalmente antagônicas à Bíblia. A velha Serpente está a todo vapor!

Em dias em que a Verdade tem sido tão subjugada e corrompida, cabe à igreja de Deus, que é a “coluna e baluarte da verdade” (1Tm 3.15), ser a sua guardiã. Deus não outorgou esse poder a nenhuma outra instituição que porventura exista na face da terra, a não ser à sua própria Igreja, que ele comprou com o sangue do Seu Filho. O mundo descrente tem militado de todas as formas contra a Revelação de Deus. As modernas campanhas ateístas são prova disso. Uma verdadeira “guerra” pela Verdade foi instaurada. Urge, pois, que os bons “soldados de Cristo” estejam aptos a combater os inimigos da cruz nessa batalha.

Soli Deo Gloria!


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[1]H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo. Editora Aste, 2001. Pág. 81


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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Escrevendo sobre/sob turbulência(s)

Na minha infanto-adolescência, como é de praxe nessa fase da vida, eu pensava que era capaz de realizar algumas “proezas”. Não citarei todas, obviamente, mas uma delas era tentar escrever dentro do ônibus, voltando da escola. A cada lombada eu fazia uma pausa, mas não adiantava muita coisa – a estrada, por (ainda) ser de paralelepípedo, me impedia de escrever legivelmente, e o que sobrava eram somente garranchos medonhos. Por perceber que não conseguiria escrever, eu me contentava apenas em ler, o que também era quase impossível de se realizar, haja vista a irregularidade da pista. As turbulências do caminho me impossibilitavam de tais coisas.

Alguns anos se passaram e aqui estou eu, com meu lap-top, sentado à mesa do meu quarto, encontrando as mesmas dificuldades. Obviamente, não me refiro a ônibus ou a paralelepípedos, e sim, à tarefa de escrever, que continua árdua, embora não pelos mesmos motivos de antes, exatamente. Hoje, minhas “turbulências” são outras, e variam desde a falta de ideias (“insigths”) à falta de tempo. Quando as ideias fluem, nem sempre tenho tempo para transcrevê-las; o contrário também é verdade. O que me resta, então, é sobreviver das poucas anotações que consigo fazer quando algo me salta à mente, para escrever numa oportunidade próxima. Não são muitas as vezes em que se encontra uma situação ideal, que combine tempo disponível e ideias abundantes, aliadas a um lugar bem tranqüilo onde se possa escrever com razoável paz. Quando não dispomos de nada disso, a porta para o desespero se abre (principalmente para um blogueiro como eu, que precisa manter seu blog “atualizado”).

Minhas elucubrações sobre esse assunto me fizeram viajar um pouco pela história do povo de Deus. Fiquei a pensar em Moisés, escrevendo o Pentateuco. Ora, ele não estava escrevendo em seu escritório particular, com ar-condicionado, lap-top e cafezinho ao lado. Ele estava em pleno deserto com os israelitas! O que dizer, então, de Davi? Boa parte dos salmos que ele escreveu foi em circunstâncias extremamente adversas (e.g. Sl 23; 51 etc.). Talvez o melhor exemplo seja o do apóstolo Paulo. Ele mesmo nos diz, por exemplo, que escreveu sua segunda carta aos coríntios “no meio de muitos sofrimentos em angústias de coração” (2Co 2.4). Os “sofrimentos” que o apóstolo tem em mente são, certamente, físicos (cf. 2Co 1.8; 11.23-27), ao passo que as “angústias de coração” tem a ver com a sua extrema “preocupação com todas as igrejas” (2Co 11.28) – especialmente a de Corinto. Há uma grande probabilidade de que a sua primeira carta aos coríntios também tenha sido escrita em circunstâncias semelhantes. Paulo estava em Éfeso quando a escreveu. Ele nos diz, por exemplo, que lutou com feras[1] naquela cidade (1Co 15.32) e que, a despeito da “porta grande e oportuna” que se lhe tinha aberto para o trabalho, “muitos adversários” se insurgiram contra ele (1Co 16.8,9). Escrevendo pela segunda vez ao jovem pastor Timóteo, o já debilitado Paulo prevê seu próprio martírio (2Tm 4.6-8). Aqui, sugere-se que ele tenha escrito em precárias condições de saúde. Pesa também o fato de que pelo menos um terço das suas cartas (Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemon)[2] foi escrito da prisão. Há outros também, como o apóstolo João, por exemplo, que escreveu o último livro da Bíblia quando estava exilado na ilha de Patmos, “por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1.9).

O período da Reforma também tem algo a nos dizer sobre isso, especialmente em se tratando das suas figuras mais proeminentes. Um bom exemplo foi Lutero. Não era raro encontrá-lo jogando frascos de tinta de escrever ao ar, pensando estar atingindo o diabo! Seus tormentos não o deixavam trabalhar em paz. Mas foi numa dessas situações que ele escreveu um dos hinos cristãos mais famosos de todos os tempos, Castelo Forte, quando fugia da perseguição de Carlos V, em 1529. Além disso, traduziu todo o Novo Testamento diretamente do grego para o alemão em menos de um ano, tendo completado a tradução de toda a Bíblia em 1534. “Não só foi a primeira Bíblia do povo alemão em sua própria língua como tornou a forma padrão da língua germânica”[3]. Tudo isso Lutero realizou sob fortes ameaças dos seus inimigos, e não numa “torre de marfim” inatingível.

O caso de João Calvino é ainda mais interessante. Depois da sua “repentina” conversão, o jovem reformador decidira se dedicar inteira e exclusivamente à reflexão e ao estudo das Escrituras. Resoluto disso, “com a intenção de estudar e escrever em reclusão e tranqüilidade”[4], ele partiu para o sul da Alemanha. Quando estava em Estrasburgo, porém, sua rota teve que ser alterada (uma guerra entre Carlos V e Francis I fez com que as tropas bloqueassem a estrada para Estrasburgo), e Calvino teve que desviar por Genebra. Lá ele encontrou William Farel, líder protestante naquela cidade, que insistiu para que Calvino permanecesse lá. Vou deixar para que o próprio Calvino nos conte de como Farel o convenceu a ficar em Genebra:

Farel, que inflamava-se com um zelo extraordinário pelo avanço do evangelho, imediatamente empregou todas as suas forças para me convencer a ficar naquele lugar. E depois que descobriu que o desejo do meu coração era dedicar-me aos estudos particulares, razão pela qual queria me manter livre de outras ocupações, e percebendo que nada conseguiria com súplicas, ele prosseguiu falando de uma maldição que Deus lançaria sobre o meu isolamento e a tranqüilidade dos estudos que eu buscava, caso me recusasse a prestar auxílio quando a necessidade era tão urgente. Fiquei tão assustado com esta maldição que desisti da viagem que tencionava fazer[5].


Certamente, Calvino realizou seu sonho, a saber, o de se dedicar à reflexão e ao estudo das Escrituras. Foi em Genebra que ele editou e publicou sua obra-prima: As Institutas da Religião Cristã. Foi lá, também, que ele começou a comentar os livros das Escrituras, começando por Romanos. Dos sessenta e seis livros da Bíblia, Calvino comentou quarenta e oito, sendo vinte e quatro do Antigo Testamento vinte e quatro do Novo Testamento. Mas não pensemos que ele encontrou em Genebra a “tranqüilidade” que ele tanto desejava. Foi em meio a inúmeras tribulações que o reformador lapidou toda a teologia que ele nos legou. Além das perseguições, que não foram poucas, havias os problemas familiares. Morreram-lhe três filhos (um aborto, um ao nascer, e outro com apenas duas semanas de vida). Logo em seguida, em 1549, foi a vez de sua esposa, Idelette Stordeur, o deixar. Ela morreu de tuberculose. Tudo isso veio como uma faca afiada no peito do reformador. Como se não bastasse, Calvino ainda tinha que conviver com seus próprios problemas de saúde, que eram seriíssimos, e que muitas vezes o impediram de exercer seu ministério de forma mais intensa. Ainda assim, ele arrumou tempo e disposição para pregar cerca de quatro mil sermões durante toda a sua breve vida, deixando-nos toda uma herança gigantesca. Ele morreu aos 54 anos, em 27 de maio de 1564, enquanto comentava o livro do profeta Ezequiel.

Mas não é preciso ir muito longe em nossa pesquisa, não. Bem pertinho de nós, aqui no Brasil, fiquei muito feliz quando li os agradecimentos do Dr. Augustus Nicodemus em seu livro A Bíblia e seus intérpretes. Ele dedica sua última nota de agradecimento à sua esposa Minka. Ele diz que

Sem a sua compreensão e paciência eu não teria como terminar esta pesquisa, que já passa dos dez anos. Ao dedicar-se ainda mais a Hendrika, Samuel, David e Anna, nossos filhos, ela se deu por mim, comprando-me tempo precioso para terminar esta obra[6].


O que pouca gente percebe é que Augustus Nicodemus não escreveu esse livro da noite para o dia – foram mais de dez anos de pesquisa! E não somente isso, mas ele teve que abdicar de parte da sua dedicação aos próprios filhos, para que essa preciosa pérola da literatura evangélica nacional chegasse a nossas mãos. Isso sem contar com os possíveis imprevistos, intempéries, problemas de saúde etc. Acredito que ninguém, quando vai comprar uma joia, fica se perguntando a quantos graus Celsius o ouro bruto teve que ser submetido para que se chegasse ao produto final. Estamos interessados somente na obra-prima, e não nos processos que levaram a ela. Contudo, essa visão limitada, utilitária e imediatista faz com que não atribuamos o valor devido às coisas.

Muitos outros nomes ainda poderiam ser citados, mas preferi restringir esse meu modesto tour a esses poucos exemplos. Não consigo me imaginar na pele Calvino, por exemplo, tanto pela literatura que produziu, quanto pelas circunstâncias em que isso se deu, e ainda mais pela grandeza da sua teologia. Se os simples afazeres diários me fazem perder o prumo (e o texto), o que diria eu das perseguições, doenças e perdas diárias? Entretanto, entendo que cada época encerra as suas próprias dificuldades. Moisés conviveu com as dele, e Lutero também. Cada um na sua. É preciso que nós, cidadãos/escritores/(blogueiros!) do século XXI, saibamos conviver com as nossas “turbulências” também, “remindo o tempo, porque os dias são maus” (Ef 5.16).


“Aproveitai as oportunidades” (Cl 4.5)!

Soli Deo Gloria!

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[1]Não devemos entender “feras” no seu sentido literal, uma vez que a expressão que a antecede, “como homem”, significa “falar figuradamente”. Provavelmente Paulo tem em mente os seus perseguidores, especialmente os seus patrícios judeus.
[2]Ainda se tem dúvidas sobre outras, como II Timóteo, por exemplo.
[3] Cairns, Earle E. O Cristianismo através dos séculos – uma história da igreja cristã. Editora Vida Nova, São Paulo – SP, 1995. 2ª Ed. Pág. 238.
[4]Em Lawson, Steven J. A arte expositiva de Calvino. Editora Fiel, São José dos Campos – SP, 2008. Pág. 23. Itálico meu.
[5]Idem.
[6]Lopes, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. Cultura Cristã, São Paulo – SP, 2ª Ed. 2007. Pág. 9.

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