segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Quantas bicicletas Deus tem?

Já é o segundo domingo consecutivo que estamos estudando sobre a doutrina da predestinação na escola dominical em nossa congregação. E, apesar de se tratar de uma congregação presbiteriana, as dificuldades em torno da doutrina ainda persistem nos corações e mentes de alguns – tanto a dificuldade em entendê-la quanto (principalmente!) em aceitá-la. Conversando sobre o assunto com minha esposa em casa, ela me lembrou de um ex-pastor nosso, o qual gostava de explicar a eleição da seguinte maneira: imagine que eu tenho uma bicicleta, e vejo dois garotos na rua. Resolvo, então, dar minha bicicleta a um deles. Alguém poderia me questionar por que eu dei a um e não ao outro, ao que eu responderia dizendo que a bicicleta é minha, e a dou a quem quiser. Não levei em conta quaisquer méritos ou deméritos nas crianças, simplesmente escolhi uma para ser agraciada. Assim, pois, é com a salvação: Deus a dá a quem Ele quer e ninguém pode reclamar disso, pois é algo que pertence a Ele. Fiz questão de levar a ilustração para a classe, mas com a seguinte pergunta: tudo bem, mas... teria Deus apenas uma bicicleta? Na realidade, levantei a questão como que me colocando no lugar de alguém que não aceita a doutrina da eleição incondicional tal como é explanada pela fé reformada. E, com isso, acabei aguçando ainda mais a polêmica que já estava sendo travada ali, mas com a intenção de dar uma resposta depois, obviamente.

Respostas? Há, se levarmos em conta, dentre outras coisas, a relação suficiência-eficiência. Encontramos um bom exemplo disso nos Cânones de Dort, no capítulo que trata sobre a morte de Cristo e a salvação do homem por meio dela:

Esta morte do Filho de Deus é o único e perfeito sacrifício pelos pecados, de valor e dignidade infinitos, abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro.

Cânones de Dort, II.3. Ênfase minha.

Ou seja, embora a morte de Cristo seja “abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro”, ela é eficiente apenas nos eleitos, como o próprio documento diz em seguida:

Pois este foi o soberano conselho, a vontade graciosa e o propósito de Deus o Pai, que a eficácia vivificante e salvífica da preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os eleitos. Daria somente a eles a justificação pela fé e por conseguinte os traria infalivelmente à salvação. Isto quer dizer que foi da vontade de Deus que Cristo por meio do sangue na cruz (pelo qual Ele confirmou a nova aliança) redimisse efetivamente de todos os povos, tribos, línguas e nações, todos aqueles e somente aqueles que foram escolhidos desde a eternidade para serem salvos, e Lhe foram dado pelo Pai.

Idem, II.8. Ênfase minha.

Isto posto, podemos voltar à nossa ilustração da bicicleta: Deus até teria mais para dar, mas resolveu não fazê-lo. E por que não o fez, sendo Ele mesmo bom? Penso ser justamente aí que reside boa parte do problema quando falamos da exclusiva soberania de Deus na salvação do homem. Aliás, a própria pergunta em si já apresenta um grave problema de perspectiva. Já disse algumas vezes que todo e qualquer queixume contra a doutrina da eleição incondicional reside no fato de que o homem se acha bom por natureza e, por conseguinte, merecedor da graça (a “bicicleta”) de Deus. Na realidade, Cristo morreu por mim porque eu merecia ser salvo. É quando o homem passa, então, a confundir a justiça de Deus com a sua própria.

Minha resposta à pergunta por que Deus, mesmo sendo bom não quis Se valer da suficiência da Sua graça para alcançar a todos os que jazem nas trevas é justamente porque a Sua justiça seria ofuscada pelo seu amor, visto que não seria manifesta. Ora, o pecado não poderia passar impune. Se passasse, Deus, que odeia o pecado, deixaria de ser justo e santo. Assim sendo, o amor de Deus não pode ser dissociado do seu corolário, que é a Sua ira, a qual Paulo diz que "se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça" (Rm 1.18). E quando o amor sacrifica a justiça, o que temos não pode ser o amor bíblico e divino, mas um amor defeituoso e totalmente incapaz de redimir aquilo a que se propõe. Poderíamos afirmar, ainda com base nessa passagem paulina, que privar Deus de Sua ira santa é suprimir a verdade (justiça) para que a mentira (injustiça) prevaleça.

Acho que deveríamos pensar duas vezes antes de querermos sobrepor nossos "trapos de imundícia" (Is 64.6) à pureza do Senhor. E antes de reclamar qualquer "bicicleta" a Deus, que déssemos uma atenção especial às palavras do profeta Jeremias: "por que, pois, se queixa o homem vivente? Queixe-se cada um dos seus próprios pecados" (Lm 3.39). Mas isso, quantos querem?

Soli Deo Gloria!

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