quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ateísmo “paratodos” – A democratização da descrença numa sociedade secularizada

De uns tempos pra cá o ateísmo tem recebido uma atenção especial por parte da mídia, endossada pelas declarações de algumas celebridades que se autodenominam “ateias” ou “agnósticas” e, mais ainda, reforçada com as campanhas de cientistas e filósofos engajados numa verdadeira guerra contra o teísmo religioso. Munidos com uma argumentação eloquente, os propagadores dessa perspectiva tem feito a cabeça de muitas pessoas, fazendo com que o ateísmo se torne numa alternativa quase que religiosa (por mais irônico e paradoxal que isso possa soar) para o cidadão pós-moderno tão carente de referenciais.

Obviamente, o assunto é vasto, podendo variar desde o manifesto em prol da proibição das manifestações religiosas nos esportes (pois é, Kaká... sua batata está assando!) até às campanhas pró-ateístas mediadas por alguns dos profetas do ateísmo pós-moderno. No início desse ano a British Humanist Association (Associação Humanista Britânica) empreendeu uma campanha de 195 mil dólares para colocar nos ônibus londrinos a seguinte frase: “There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life” (“Provavelmente, Deus não existe. Agora, pare de se preocupar e aproveite a vida”). Segundo os próprios membros da Associação, a campanha, apoiada por nomes de peso como o biólogo Richard Dawkins (autor de Deus, um delírio), tem por objetivo “promover o ateísmo na Grã-Bretanha, encorajar mais ateístas a assumirem publicamente a sua posição e elevar o moral das pessoas a caminho do trabalho”. Como se pode perceber, esse novo ateísmo (chamado por alguns de neo-ateísmo) não pretende enclausurar seus pressupostos nos livros e nos discursos catedráticos, mas difundir suas ideias num marketing frenético e dinâmico, aproximando-se cada vez mais da população (leitora ou não) e estimulando as pessoas a abandonarem suas crenças. “Tenho certeza que essa campanha será vista como um sopro de ar fresco”, afirmou Hanne Stinson, presidente da referida Associação[1]. Essa militância confere aos novos ateus um status privilegiado perante a sociedade pensante, e os transforma em verdadeiros “sumos sacerdotes” da causa agnóstica. Juntando o que há de melhor no ateísmo evidencial (que é aquele que nega a Deus por “falta de evidências”) e no ateísmo da suspeição (que é aquele que acusa a religião de “manipulação das massas”), o neo-ateísmo (acredito que o termo Neo-Iluminismo também seria bastante apropriado) apresenta essas duas correntes “em um só pacote preparado para a condição pós-moderna”[2].

Essa nova (?) filosofia tem angariado alguns adeptos do mundo das celebridades. Recentemente o ator Brad Pitt, em entrevista a uma importante revista alemã, a Bild, declarou que não acredita em Deus. “Sou provavelmente 20% ateu e 80% agnóstico. Não acho que alguém realmente saiba (se Deus existe). Você só vai descobrir, ou não, quando chegar lá. Até isso acontecer não existe porque ficar pensando no assunto”, disse ele (se Brad sustentar isso até a morte, tenho a leve impressão de que ele vai descobrir essa verdade tarde demais). A atriz Julianne Moore foi mais irônica. Em 2002, perguntada sobre o que diria a Deus se o visse, ela falou: “Uau, eu estava errada, você realmente existe” (mais irônico ainda é que essa mesma atriz estrelou o excelente filme Ensaio sobre a cegueira, no qual toda a população de uma cidade não identificada foi repentinamente atingida por uma epidemia de cegueira, e somente ela ficou imune). Um caso curioso (para não dizer engraçado) foi o do Dr. Dráuzio Varela. O médico disse que virou ateu quando mordeu a hóstia e viu que não saiu sangue dela[3] (quem mandou crer na mentira romana da transubstanciação?). É óbvio que a lista é bem mais exaustiva, mas fiquemos com apenas esses exemplos. Como é evidente nesses casos, os motivos para tanta desilusão variam de um racionalismo científico-filosófico (ateísmo evidencial), com variantes agnósticas, a experiências religiosas frustrantes (ateísmo da suspeição), com desdobramentos psicossociais.

Diante das poucas evidências acima expostas não seria nenhum exagero dizer que a marcha pela “democratização da descrença” anda em cadência acelerada numa sociedade cada vez mais pluralista, descrente, secularizada e, por conseguinte, doente. Para a opinião pública as opiniões das instituições religiosas pouco importam, pois elas são irrelevantes e inúteis. Deus não está incluso no projeto de vida do cidadão hodierno, e quando está, geralmente é na forma de uma divindade pocket, que caiba perfeitamente no bolso das pretensões humanas. Dentro desse contexto não me surpreende o fato de o Teísmo Bíblico ser o alvo número um dos ataques dessa milícia agnóstica. Se endossamos o Criacionismo como ciência, somos tachados de ignorantes; e se reivindicamos a exclusividade da revelação bíblica como a única Verdade, somos tachados de fundamentalistas intransigentes. Mas não é somente por isso que somos tão rechaçados. Para aumentar mais ainda a cratera, as igrejas fazem o favor de promover escândalos, confirmando suas reminiscências medievais (como as novas “indulgências” impostas pelos teólogos da prosperidade – preciso citar nomes?) e contribuindo mais ainda para que as suspeitas dos agnósticos e críticos de plantão se confirmem. Talvez tenha sido exatamente isso o que tenha motivado Cazuza a dizer que “o banheiro é a igreja de todos os bêbados”, na sua depressiva Down em mim. Se eu estiver equivocado em minhas assertivas, vou deixar para que Freud explique.

Há quem fique surpreendido com toda essa maré de descrença. Particularmente, nada disso me surpreende. Aliás, eu diria que o número de ateus é bem maior do que se imagina e do que as estatísticas apontam. Em minha opinião, ateu não é apenas aquele que declara sua descrença, mas também aquele que vive como se Deus não existisse, a seu bel-prazer. Na sua epístola aos Romanos o apóstolo Paulo fala tanto destes como daqueles (Rm 1.18-32). Tanto a descrença quanto a perversão deliberada são fruto do desprezo pelo conhecimento de Deus (cf. Rm 1.28-32). Paulo coloca os dois grupos num só pacote, e a sua sentença (ou vaticínio) contra eles é fatal: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18). Aos ateus está dado o aviso: CUIDADO!

Soli Deo Gloria!


Em tempo: O título desta postagem, Ateísmo "paratodos", é uma referência ao caso da campanha ateísta nos ônibus de Londres, já que a palavra ônibus (do latim omnibus) siginifica, literalmente, "paratodos" (para todos).
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[1]Em http://quiosque.aeiou.pt/gen.pl?p=print&op=view&fokey=ae.stories/12483&sid=ae.sections/3

[2]Veja o excelente prefácio do Rev. Dr. Davi Charles Gomes ao livro Ateísmo Remix, de Albert Mohler (Ed. Fiel, 2009, pág. 10).

[3] As referências a Brad Pitt, Julianne Moore e Dráuzio Varela estão em http//br.noticias.yahoo.com/s/20082009/48/entretenimento-famosos-nao-acreditam-deus.html.

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Indicação de Blog Reformado: "História e Debate"

É com grande prazer que venho indicar aos leitores do Optica Reformata o blog de um grande amigo meu, o Pr José Roberto de Souza. O blog é o História e Debate, que, além de trazer conteúdo de história da igreja (que é o forte do Pr José Roberto), traz também vários insights para os pregadores da Palavra, como ilustrações do cotidiano e coisas afins. O Pr José Roberto é pastor da Igreja Presbiteriana do Ibura e coordenador do Departamento de História da Igreja do Seminário Presbiteriano do Norte, ambos em Recife - PE. O blog é recente, e, por este motivo, ainda não possui muitas postagens. O Pr José Roberto publica artigos para o Jornal do Commercio e para o site Eleitos de Deus. Eu disse a ele que a ideia de um blog surgiu "tardia", pois já deveria estar ativo há tempos! Recomendo a todos a leitura de mais esse blog que vem somente para somar na blogsofera reformada.

Leonardo Bruno Galdino.
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terça-feira, 18 de agosto de 2009

“Meu partido é um coração partido” – Do partidarismo teológico dos evangélicos brasileiros

A frase de Cazuza supracitada entre aspas reflete bem a postura de muitos evangélicos brasileiros diante das diversas perspectivas teológicas existentes dentro do Protestantismo. Tenho lido ultimamente (em blogs, sites, livros, revistas etc.) diversos manifestos cada vez mais verborrágicos de muitos que defendem uma suposta neutralidade hermenêutica, argumentando que “nada de Calvino ou Armínio, prefiro ficar com a Bíblia”, aliada a uma espécie de desilusão teológica, argumentando que “teologia é aquilo que os teólogos dizem acerca de Deus”. Para os tais, tudo isso se constitui numa prova incontestável da vaidade e tagarelice dos “teólogos de plantão”, que só sabem ficar repetindo as frases e pensamentos de teólogos renomados, já que são “incapazes” de ser originais.

Embora seja oportuno fazer uma referência às centenas de novas denominações (“partidos”) que surgem no cenário brasileiro a cada dia, de nomes que vão de Igreja Noiva de Jesus da Segunda Divisão a Igreja Abastecedora de Água Abençoada, não é meu objetivo, aqui, comentar sobre essas aberrações, embora o assunto por si só já dispense comentários. Mas, talvez eu escreva algo específico sobre isso. Meu alvo no presente artigo são aqueles que arrogam para si uma hermenêutica “equilibrada”, os quais eu chamaria carinhosamente de “os equilibrados”. Estes parecem ignorar completamente os conceitos teológicos e hermenêuticos embutidos em suas mentes, acusando de “parcialidade teológica” os pobres mortais que não conseguem se desvencilhar dos seus pressupostos. Para eles, tudo isso gera somente disputas teológicas inúteis e nocivas ao Reino de Deus, ainda que elas sirvam para traçar limites entre a ortodoxia e a heresia (Calcedônia serviu para alguma coisa!).

Uma das disputas mais acirradas é entre calvinistas e arminianos, particularmente no que se refere às questões soteriológicas, o que também se constitui, via de regra, numa questão hermenêutica. Não quero entrar no mérito da discussão sobre quem está com a razão, até porque sou muito suspeito para falar sobre isso. Mas o que mais me irrita é ver gente se dizendo que não é uma coisa nem outra. Semelhantemente àquele “garoto que ia mudar o mundo”, da aludida música do Cazuza, os profetas do equilíbrio agora assistem a essa disputa teológica “em cima do muro”. “É preciso evitar os extremos – a virtude está no meio”, é o jargão favorito deles. Mas o pior de tudo é que, geralmente, eles não sabem delinear com precisão que extremos são esses, muito menos a virtude. Quando o assunto é predestinação, por exemplo, um livro bastante usado pelos “equilibrados” é Eleitos, mas livres (Editora Vida), de Norman Geisler, que arroga para si uma pretensa “perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio”. Todavia, qualquer leitor que tenha uma boa instrução teológica logo saberá que o livro nada mais é do que um arminianismo disfarçado sob o guarda-chuva da “moderação”[1]. Prefiro lidar com os mais convictos, ainda que arminianos, aos pretensos “neutros”. Não creio que haja um meio-termo entre uma coisa e outra. Recentemente fui questionado por um leitor por que escrevo “a partir de uma ótica calvinista, e não, a partir de uma ótica bíblica”. Minha resposta foi:
“O uso que faço da palavra ‘calvinista’ é de conotação histórica; não visa à pessoa de Calvino, e sim, à sua teologia, que serviu de base para as igrejas reformadas na Suíça e Holanda (Igreja Reformada), Inglaterra (Congregacionais, Batistas [alguns] e Anglicanos) e Escócia (Presbiterianos), bem como ao movimento Puritano dos séculos XVI, XVII e XVIII, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Por uma questão de coerência, você deveria sugerir também que eu mudasse o nome do blog (Optica Reformata), uma vez que ótica reformada é sinônimo de ótica calvinista”.
Para muitas pessoas, o fato de alguém se declarar como um calvinista não demonstra apenas arrogância, mas também, desprezo por Cristo. Segundo eles, estamos incorrendo no mesmo erro da igreja de Corinto, ao criarmos “partidos” no corpo de Cristo (cf. 1Co 1.10ss; 3.1-7). E isso engrossa mais ainda o coro da multidão dos inconformados: “Abaixo o PPC (Partido Predestinalista de Calvino)”!

A questão é mais abrangente do que se imagina. Certa vez perguntei a um irmão qual era a igreja (denominação) que ele fazia parte, e ele me respondeu que era da “igreja de Jesus”. Eu perguntei a ele se ele pertencia a uma “igreja sem nome”, o que ele interpretou como uma ironia de minha parte (e foi, de fato). “Mostre-me na Bíblia uma igreja presbiteriana, batista, congregacional, episcopal ou qualquer outra denominação que eu calo a minha boca”, disse ele contrariado. Imediatamente, lembrei-me dos “espirituais” de Corinto, que diziam que eram “de Cristo”, constituindo-se, talvez, no pior dos partidos daquela igreja (1Co 1.10ss). O que noto nessas ideias é um discurso de protesto contra os modelos tradicionais de igreja do período da Reforma. Para muitos, a igreja moderna entendeu errado a mensagem de Jesus. É preciso rever absolutamente tudo. Muito pouco (para não dizer nada) restou da igreja primitiva. É exatamente isso que Brian McLaren, o guru do movimento de igreja emergente propõe no livro A mensagem secreta de Jesus (Ed. Thomas Nelson Brasil). Para ele, a igreja até hoje ainda não entendeu o que Jesus queria transmitir. O evangelho foi sendo modificado ao longo da História, de tal forma que pouco restou da genuína doutrina apostólica. Urge, pois, que compreendamos qual é a “mensagem secreta” do Mestre. Apesar de McLaren ter razão em alguns aspectos, não creio que a igreja perdeu por completo a essência do evangelho. Aliás, é bom que se diga que a proposta dele se aproxima mais de uma “neo-ortodoxia pós-moderna” do que de um clamor ao resgate das origens da igreja primitiva[2]. Creio que, pelo fato de Deus preservar os seus eleitos de tropeçar (cf. Jd 24, onde o contexto sugere um livramento de apostasia total), Ele mesmo é quem supre a sua Igreja com os meios ordinários para tal. Ou será que Deus aderiu a uma espécie de “deísmo teológico”, abandonando o Seu povo por completo da Sua Palavra, deixando-o à deriva?

Fico me perguntando se uma “extinção denominacional” seria a solução para a crise de identidade da igreja evangélica brasileira; se isso traria mais “equilíbrio” ao povo de Deus. Será que aqueles que promovem a esse tipo de unidade estão certos? Não está na hora de derrubar os “partidos” (calvinista, batista, presbiteriano, episcopal, arminiano, pentecostal etc) e viver a plenitude orgânica do Corpo de Cristo? Sinceramente, além de não crer que isso seja possível, também não creio que seja viável. Não seria possível porque ninguém estaria disposto a abandonar seus pressupostos, e não seria viável porque isso só aumentaria ainda mais a cratera – não haveria unidade teológica, obviamente. Prefiro continuar seguindo o sistema reformado de teologia, não por julgá-lo perfeito, e sim por ver que é o que mais se aproxima do padrão legado pelos apóstolos (o bom e velho método gramático-histórico). Sei que muitos me considerarão um arrogante exclusivista pelo que acabo de dizer, mas essa é minha opinião. Sei também que a grande massa evangélica no Brasil não é reformada, mas nem por isso eu chegaria ao ponto de dizer o que Cazuza disse, que os “meus inimigos estão no poder”. Apesar das diferenças teológicas que tenho com algumas pessoas, reconheço-as como irmãs e irmãos em Cristo. Mas, continuo dizendo que a teologia e uma boa hermenêutica são necessárias. Talvez tão necessárias ao ponto de eu parafrasear (sem medo de ser feliz!) nosso poeta: “Teologia: eu quero uma pra viver”[3]!

Soli Deo Gloria!


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[1] Sobre esse livro veja a excelente resenha de Franklin Ferreira em http://www.monergismo.com/textos/resenhas/eleitos_livres_franklin.htm

[2] Sobre isso, ver artigo de Mauro Meister em http://tempora-mores.blogspot.com/2007/03/em-meio-ao-caos-areo-igreja-emergente.html.

[3]Por uma questão de precaução, gostaria de avisar aos leitores que NÃO ESTOU AFIRMANDO QUE É A TEOLOGIA REFORMADA QUEM IRÁ ME CONDUZIR PARA O CÉU! Como bem disse o erudito reformado Herman Bavinck, em seu leito de morte, "minha erudição para nada serve agora. Somente a fé me resta".

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quarta-feira, 12 de agosto de 2009

"NÃO VÁ LÁ"!

O Monte Mulanje foi a última parada que o economista brasileiro Gabriel Buchmann resolveu fazer após ter percorrido vinte e seis países em apenas um ano, com o objetivo de colher o máximo de informações e experiências possíveis para o seu doutorado em políticas públicas que iniciaria em setembro, nos Estados Unidos. Por ter 64% de sua população analfabeta e por elencar o rol dos vinte países mais pobres do mundo, Malauí, país do sudoeste africano, era o cenário ideal para o tipo de dados que Gabriel almejava coletar, especificamente a vila Mulanje, ao pé da montanha homônima. Ela era “um retrato da pobreza que Gabriel procurava”[1]. Acompanhado de um guia local, o brasileiro, que já havia escalado o Everest e o Kilimanjaro, decidiu subir até ao cume do monte, a três mil metros de altitude, pretendendo voltar no mesmo dia. O guia local, apesar de ter achado a empreitada uma tarefa bastante difícil, acatou a ideia. Num dado momento da subida, Gabriel abriu mão do guia, alegando que este estava indo “devagar demais”, e decidiu ir sozinho ao topo do Mulanje. O guia disse a Gabriel que era forte o suficiente para suportar a dificuldade da escalada, mas o brasileiro, após ter dito ao guia que ia por conta própria, dispensou-o, pois tinha pressa. Após ter pernoitado no Abrigo Chisepo, a mil metros abaixo do pico, Gabriel saiu cedo, de bermuda e blusa de mangas curtas, rumo ao alto da montanha. Seriam sete horas intensas de caminhada numa subida bastante íngreme. Era uma sexta-feira, 17 de julho, e o destino final seria o Pico Saptiwa, nome que significa “não vá lá”, em Chichewa, língua falada pelos nativos. O próprio nome do pico parecia ser um presságio, um aviso. Gabriel conseguiu chegar ao topo. Porém, quando ele descia o pico, teve uma surpresa nada agradável. Uma densa neblina tomou conta do alto da montanha. Gabriel se perdeu no caminho de volta, pois a neblina limitava sua visão a apenas dez metros à frente. Depois de alguns dias, foi dado como desaparecido. Uma experiente equipe de resgate, formada por seis canadenses e um argentino, comandou as operações de busca ao economista brasileiro. Cerca de sessenta pessoas vasculharam o Monte Mulanje por mais de duas semanas, sem encontrar nenhum vestígio do economista. Foi então que, no dia 1 de agosto, num despretensioso sábado, dois nativos que estavam na montanha colhendo folhas e madeira para construir casas encontraram o corpo do brasileiro. Gabriel Buchmann, de apenas vinte e oito anos, foi encontrado sem vida, debaixo de um ninho que ele mesmo construíra por entre a grama alta da montanha para se proteger de um frio que se aproximava do zero grau. Mesmo levando consigo agasalhos de lã, calças, gorro, cachecol e demais artefatos para o frio e conhecendo as técnicas de montanhismo, o corpo do brasileiro não resistiu à hipotermia. Pela posição em que Gabriel foi encontrado presume-se que ele morreu dormindo, sem sentir dor, apenas frio, muito frio. Há quem diga que, se Gabriel tivesse atentado para as recomendações do guia e para o significado nome do pico Saptiwa - “NÃO VÁ LÁ”, talvez ainda estivesse vivo para contar histórias e concluir o seu doutorado.

Não pretendo, aqui, entrar no mérito desta última questão. Particularmente, creio irrestritamente na soberania de Deus e que tudo, absolutamente tudo o que acontece, passa pelo planejamento e pelo crivo da Divina Providência, de modo que Deus não apenas é Sabedor (Onisciente) de todas as coisas, mas também o Ordenador (Senhor) de todas elas. Mas, como disse há pouco, não é sobre isso que eu quero dissertar (fica para uma próxima). Tampouco pretendo endossar alguma superstição pelo significado do nome do pico. Certamente, muitos já foram lá e não morreram. Quero apenas aproveitar o que aconteceu com Gabriel para ilustrar o perigo que um cristão professo corre ao não dar ouvidos ao seu “guia espiritual” (cf. Hb 13.7), quando este solenemente o alerta: “Não vá lá”!

Muitos são os casos de pessoas que estão dentro das igrejas e que se enfiam em apuros espirituais por não ouvirem seus pastores. Correm atrás das “novidades teológicas”, muitas das quais não passam de ventos de doutrinas, que as agitam de um lado para o outro. Ignoram o alerta dos seus guias de que naquela trilha que estão seguindo há uma densa neblina que obstruirá suas visões e lhes congelarão a alma. “Saptiwa, Saptiwa”, mas eles preferem ir. Por exemplo, conheço pessoas que de tanto flertarem com as falácias do Liberalismo Teológico, hoje não conseguem mais se livrar delas. O flerte virou namoro, evoluiu para noivado e acabou culminando em um casamento indissolúvel. Seus corações estão frios e vazios. Não há mais nenhum vestígio de fé. Muitos que antes eram conservadores hoje negam doutrinas fundamentais do Cristianismo, como a encarnação, a divindade e a historicidade de Cristo e a infalibilidade e inerrância das Escrituras. Muitos fazem declarações ousadas e firmes de sua própria incredulidade, revezando-se entre os púlpitos de suas congregações e as salas de aula dos seminários nos quais lecionam. No afã de alcançarem os mais altos “picos teológicos”, ultrapassaram a sã doutrina e racionalizaram a fé. Atentaram demais para a letra e se esqueceram da piedade, da devoção. Como diria Jorge Camargo, na sua belíssima música Letra Morta, “está no livro, está no templo, mas não está no coração; está no grego, está no hebraico, mas não se fez encarnação”. Por outro lado, há o tipo “liberal pós-moderno” (neoliberal), que é aquele que acredita em tudo e ao mesmo tempo em nada. Ele é inclusivo, absorve tudo o que puder, mesmo que sejam conceitos totalmente antagônicos. É defensor de uma fé líquida, e não sólida; instável, e não estável. Não traça limites entre a ortodoxia e a heresia. Para os tais defender a verdade é arrogância, e crer na exclusividade do Cristianismo é intransigência fundamentalista. Sua descrença se esconde sob a capa da piedade. Em minha opinião, esse é o tipo mais perigoso, pois arrebanha outros atrás de si com seus discursos “piedosos”. Fala em comunhão com Deus, em nome da “espiritualidade”. Busca uma transcendência sem Bíblia, e uma relevância sem doutrina. Dissemina seus ensinos por meio de livros, internet e todo tipo de mídia disponível, tendo como principais focos de ataque a natureza da igreja e a natureza de Deus, mudando a verdade de Deus em mentira (Rm 1.25), tudo sob a tutela do relativismo, pluralismo e inclusivismo pós-modernos. E o mais lamentável é que para tudo isso há um público bastante amplo, que muitas das vezes está dentro das igrejas questionando aquele “pobre e ignorante” pastor que ainda teima em crer na exclusividade do Evangelho como sendo “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1.16). Essa pessoas estão deixando o Senhor, o “manancial de águas vivas”, e cavando “cisternas rotas, que não retem as águas” (Jr 2.13); estão trocando o Soberano Deus, Criador dos céus e da terra, por uma divindade pocket, que caiba nos seus bolsos. Enveredaram-se por caminhos de morte, ao desdenharem dos constantes avisos para não irem lá.

Sei que em parte isso se explica pela decadência dos púlpitos. Muitos pastores estão tão preocupados em reforçar as cercas que acabam se esquecendo de melhorar o pasto. Há uma frenética “caça às bruxas”, enquanto que a pregação expositiva tem sido relegada a segundo plano. Esperam firmeza de suas ovelhas sem lhes dar alimento sólido. Sendo assim, o “Saptiwa” de nada servirá se o rebanho não for suprido com pastos verdejantes, nos quais as ovelhas devem encontrar prazer e descanso para suas almas. É preciso atentar para a segurança do rebanho sem, contudo, esquecer-se de alimentá-lo.

O escritor aos Hebreus nos adverte: “Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos pregaram a palavra de Deus; e, considerando atentamente o fim da sua vida, imitai a fé que tiveram” (Hb 13.7). Essa advertência não está aí à toa. O guia é alguém que nos orienta sobre o caminho mais seguro, e suas vidas devem nos servir de referência. Com humildade e obediência devemos nos submeter àqueles que foram ordenados por Deus para serem nossos guias espirituais. E que nossos ouvidos estejam sempre atentos quando eles insistentemente nos alertarem: “Saptiwa, Saptiwa, Saptiwa”...


Soli Deo Gloria!

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[1] Site do Fantástico.

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