sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

“Fiz-me fraco para com os fracos” – Até que ponto? A Hermenêutica e o Carnaval

Uma das músicas da Cláudia Leite, ex-vocalista do Babado Novo, diz que “carnaval... não mata, não engorda e nem faz mal”. Para os foliões não há nada de mais verdadeiro do que isso. Aliás, alguém disse que, no Brasil, o ano só começa mesmo depois do carnaval. Se vai ser em fevereiro ou março pouco importa. Da Marquês de Sapucaí às Ladeiras de Olinda; dos blocos de rua de São Luis do Paraitinga ao célebre Galo da Madrugada (o maior bloco de carnaval do mundo, segundo o Guiness Book) em Recife, o brasileiro “vai na fé”, sem morrer ou engordar.

Pois é. Parece que a moda pegou entre os evangélicos também. E para quem está pensando que dessa vez eu vou atacar os neopentecostais engana-se. Um grupo da Primeira Igreja Batista de São José dos Campos - SP, o “Conexão Livre”, vai desfilar com cerca de 500 integrantes no sambódromo de São José dos Campos em pleno domingo de carnaval. Contrariando o tradicional retiro espiritual, esse pessoal resolveu mesmo inovar. Um famoso jornal local, o Valeparaibano, estampa em manchete com letras garrafais que “Bloco da PIB canta prazer sem pecado” [1]. “Será o primeiro bloco evangélico a se apresentar oficialmente na região”, afirma a jornalista Lidiane Duarte. O bloco será reforçado com uma bateria de samba do Rio de Janeiro, tendo o samba-enredo composto pelo sambista Pedro do Borel. Contudo, esse samba-enredo teve que passar pelo crivo da Liga das Escolas de Samba de São José dos Campos, pois o regulamento não permite letras que façam qualquer tipo de apologia religiosa. “Conseguimos adequar uma condição favorável para a cultura carnavalesca e para o bloco evangélico. A igreja demonstrou que está voltada à cultura popular e esperamos que seja uma participação alegre, importante para a cidade[2]”, afirma Aderson Alves Pinto, presidente da Liga. Sob o lema “Prazer sem culpa” estampado nos seus abadás, com grupos circenses, de dança e teatro na avenida, esse pessoal também entra no coro de que “carnaval... não mata, não engorda e nem faz mal”.

O que mais me deixou intrigado nisso tudo foi o argumento pretensamente “bíblico” usado pelo líder do Conexão Livre, Marcos Madaleno. Disse ele que “na Bíblia está escrito: ‘fiz-me de tudo para com todos, para de alguma forma salvar alguns’”[3]. “Nossa intenção”, reitera, “não é falar de religião e nem combater as ações do carnaval. Nosso objetivo com o bloco é mostrar o estilo de vida com Jesus, que a gente pode ter um prazer sem culpa e uma festa que não dura somente quatro dias”[4].

Se fizermos um análise do texto no qual o líder do Conexão Livre se baseou para legitimar o evento, veremos que ele cometeu vários equívocos hermenêuticos. O texto foi o de 1 Coríntios 9.22, no qual Paulo diz que

Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns.

Proponho-me a fazer uma breve consideração desse texto e do seu respectivo contexto a fim de mostrar o que realmente o apóstolo quis dizer com isso.

De acordo com o contexto da passagem, Paulo está se referindo ao seu desprendimento material a despeito de suas prerrogativas como apóstolo e ministro do evangelho. O apóstolo tinha todo o direito de ser sustentado pela igreja, se assim o quisesse (cf. 1 Co 9.14). Mas não foi isso que ele preferiu. A própria igreja de Corinto, a quem Paulo ora escreve, foi testemunha disso. Quando Paulo chega a Corinto, Lucas nos diz que ele juntou-se ao casal Priscila e Áquila, “pois a profissão deles era fazer tendas” (At 18.3). Considerando que Corinto era um importante centro comercial da época por ser uma cidade portuária, onde o fluxo de entrada e saída de mercadoria era muito grande, e onde havia também os Jogos Ístmicos, somente superados em importância pelos Jogos Olímpicos de Atenas, a profissão de fazer tendas, certamente, era um ótimo negócio. Na certa, muitos viajantes compravam tendas para não terem que, todas as vezes, pagar hospedaria. E muitos hospedeiros, certamente, compravam tendas para alojar os viajantes que não quisessem comprar uma tenda. Em qualquer caso, o comércio de tendas era promissor, e era dele que Paulo tirava o seu sustento.

Mas não foi apenas do seu direito de ser sustentado pela congregação que o apóstolo abriu mão. Ele abdicou, também, do direito de se casar, uma vez que a maioria dos apóstolos era casada (1 Co 9.5). A razão para isso talvez esteja nas próprias orientações do apóstolo à igreja corintiana (1 Co 7). Ele diz aos coríntios que

Considero, por causa da angustiosa situação presente, ser bom para o homem permanecer assim como está. Estás casado? Não procure separar-te. Estás solteiro? Não procures casamento. Mas, se te casares, com isso não pecas; e também, se a virgem se casar, por isso não peca. Ainda assim, tais pessoas sofrerão angústias na carne, e eu quisera poupar-vos (1 Co 7.26-28).

Em Éfeso, de onde Paulo escreveu aos coríntios, uma “angustiosa situação” já se instaurara. A igreja estava sendo perseguida. Um clima de terror tomava conta daqueles que professavam a fé em Cristo. O sofrimento lhes era uma certeza. Lucas nos informa do grande “prejuízo financeiro” que a pregação do evangelho causara em Éfeso (At 19.23-40). Além do mais, Paulo previa algo de mais caótico. O império romano estava prestes a se insurgir contra os cristãos nas pessoas de Tito e Nero, por exemplo. E o que Paulo fez foi justamente advertir os irmãos para esse fato que, tão logo, se tornaria realidade. Melhor seria para o homem padecer a perseguição sozinho do que ver toda a sua família sucumbir, caso escolhesse se casar. O argumento do apóstolo é que, estando o homem (ou, a mulher) sozinho, este estaria “livre de preocupações”, podendo dedicar-se exclusivamente à obra do Senhor (7.32). Foi por esse motivo que o apóstolo preferiu o celibato ao casamento, considerando aquele como um “dom” (7.7). Paulo não queria que absolutamente nada o atrapalhasse na sua nobre missão de pregar o evangelho aos povos.

Como se não bastasse, Paulo ainda teve que sofrer adaptações culturais. Ele mesmo disse que “sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível” (1 Co 9.19). O que será que o apóstolo estava querendo transmitir com essa intrigante afirmação? Penso que aqui reside o cerne do problema hermenêutico. Muitas pessoas confundem adaptação cultural com conformação cultural, que é o que o apóstolo nos adverte a rejeitar em Romanos 12.2. Um exemplo disso é o pessoal de um grupo dito “emergente” chamado Sexxx Church, que, para alcançar homossexuais, prostitutas e afins, querem “imprimir Bíblias, que serão doadas, com uma capa imitando a folha de um caderno de brochura e com listras da bandeira GLS, com a figura de Cristo de óculos escuros e tatuagem”[5]. Será que Paulo consideraria legítimos mecanismos como esse para alcançar os ditos “marginalizados” sociais? Será que a solução para evangelizar os foliões no carnaval é fazer o mesmo que eles? Afinal de contas, não é isso que podemos inferir das declarações do próprio Paulo? Penso que não.

É necessário entendermos até que ponto Paulo se adaptou. Nos versos 20 e 21 do capítulo 9, o apóstolo nos apresenta qual foi a sua conduta diante de duas classes sociais e religiosas completamente distintas: a dos judeus e a dos gentios. Quanto aos judeus, Paulo nos diz que

Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para com os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei (1 Co 9.20).

Podemos perceber isso, por exemplo, na pregação do apóstolo dirigida aos judeus. Em Atos 13.16-41 Lucas nos relata uma pregação de Paulo a um público formado por judeus e gentios prosélitos (convertidos ao judaísmo). Nada do que Paulo fala soa estranho. Todos compreendem perfeitamente a mensagem, tanto que rogam ao apóstolo que este permaneça na cidade para pregar no sábado seguinte na sinagoga (13. 42). Paulo cita personagens e fatos da história de Israel, e todos os conheciam. A diferença crucial é que Paulo traz a lume o real significado deles. Além disso, Paulo se submeteu a alguns aspectos da Lei Cerimonial dos judeus, como a questão dos alimentos, por exemplo. Se comer carne de porco escandalizaria um judeu, a quem Paulo pretendia evangelizar, então ele não comeria. E isso não trazia confusão mental alguma ao apóstolo. Ele mesmo tinha consciência de que não estava mais debaixo da lei (cerimonial), mas agia como tal para poder aproximar-se daqueles a quem visava pregar o Evangelho da Graça de Deus.

Quando se refere ao seu procedimento para com os gentios, o apóstolo afirma que

Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei (1 Co 9.21).

Mais uma vez a pregação de Paulo nos oferece um exemplo de como ele se adaptou culturalmente ao seu contexto. Em Atos 17 temos uma das pregações mais célebres da história da igreja. Paulo está em Atenas, berço da cultura ocidental. Os filósofos se encontram no Areópago a fim de exporem os seus pensamentos, e Paulo vai ao encontro deles. Paulo era um homem que sabia usar muito bem a sua bagagem cultural. Seu vasto conhecimento dava-lhe a oportunidade de dialogar com pessoas das mais diversas cosmovisões. Na sua abordagem ele não faz referências à história de Israel, pois os gregos não a conheciam. Em vez disso, aproveitando-se de uma inscrição existente num altar, que dizia “AO DEUS DESCONHECIDO”, ele prega sobre “o Deus que fez o mundo e tudo que nele existe”, combatendo a ideia grega de que o universo fora criado por obra do acaso. Notamos aqui que Paulo em momento algum negocia sua teologia a fim de parecer “politicamente correto”. Muito embora ele tenha lançado mão de pensamentos dos próprios filósofos gregos para realçar seu argumento (“… como alguns de vossos poetas tem dito: Porque dele também somos geração” – 17.28), ele não usou seu amplo conhecimento cultural como um fim em si mesmo. Seu interesse era pregar a cruz de Cristo, não com “linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus” (1 Co 2.4,5). Paulo estava mais interessado em ser “teologicamente correto”! Como ele havia dito aos coríntios, ele não estava sem lei para com Deus (1 Co 9.21) [6]. O resultado disso foi que alguns creram, inclusive um homem chamado Dionísio, que era membro do conselho do Areópago (17.34).

Agora, Paulo nos ensina de que forma ele se adaptou e com que objetivo. Ele nos diz que se fez “fraco para com os fracos” e “tudo para com todos” (1 Co 9.21). Como dissemos no início, esse texto é largamente usado por muitos como uma justificativa bíblica para as suas invenções evangelísticas. O pensamento que permeia os métodos dessas pessoas é o de que “os fins justificam os meios”. Para estes foi isso o que Paulo estava querendo dizer. Será que eles estão certos? Mais uma vez, penso que não.

Devemos entender, antes de qualquer coisa, que os “fracos” a quem Paulo se refere são os judeus e gentios a quem ele evangelizara. Depois de falar sobre o tratamento que ele havia dispensado a esses dois grupos, ele os une numa só palavra: fracos. Essa palavra é bastante abundante nas cartas paulinas (aparece cerca de 35 vezes, dentre fraco e fraqueza). Geralmente, quando Paulo emprega essa palavra, ele a associa a condições doutrinárias, físicas, materiais, morais e espirituais, basicamente. Escrevendo aos romanos ele se refere àqueles que possuem debilidades doutrinárias (Rm 14.1). A ordem do apóstolo é que esse irmão que é débil (lit.“fraco”) na fé seja acolhido, para que possa alcançar o discernimento necessário. Escrevendo aos coríntios ele se refere a si mesmo com um homem possuidor de muitas fraquezas físicas e materiais. “Somos fracos e vocês, fortes”, desabafou o apóstolo. “Temos fome e não temos o que vestir; fomos esbofeteados; não temos sequer onde morar, embora trabalhemos exaustivamente com as nossas próprias mãos. As pessoas nos consideram o lixo do mundo” (1 Co 4.10-13). Novamente aos romanos, Paulo fala da nossa fraqueza moral (6.19) e da nossa conseqüente necessidade de ser assistido espiritualmente pelo Espírito Santo (8.26). Paulo teve que se adequar a esses tipos de pessoas. Ele teve que abrir mão de muitos privilégios para ver a obra da evangelização avançar, mesmo que isso lhe custasse a própria vida, como ele mesmo diz aos presbíteros da igreja de Éfeso (At 20.24). Isso não significa, todavia, que Paulo conformava a mensagem do evangelho ao bel prazer humano, como já dissemos. Para o apóstolo os valores do Evangelho eram inegociáveis. Pode até ser que Paulo fosse flexível em algumas questões, mas ele não abria esse leque a qualquer um. Calvino observa que, quanto aos judeus, “ele assumiu a forma judaica na presença de judeus, porém não diante de todos eles; pois muitos deles eram obstinados, os quais, sob influência do farisaísmo orgulhoso e malicioso, gostariam muito de ver a liberdade cristã totalmente suprimida”. Calvino continua observando que “a tais pessoas ele jamais se submeteria, pois Cristo não quer que nos preocupemos com pessoas desse gênero. Nosso Senhor disse: ‘Deixai-os; são cegos, guias de cegos’ [Mt 15.14]. Por isso devemos acomodar-nos aos fracos, porém não aos obstinados”[7]. Paulo não ia ficar a inflar o ego dos incrédulos, como fazemos nos dias de hoje. Nosso maior erro é confundir os fracos com os obstinados. Perdemos tanto tempo com os obstinados que acabamos por perder de vista os fracos. A obstinação é incrédula, mesmo estando escondida debaixo do guarda-chuva religioso. É o que Paulo quer dizer a Timóteo falando das pessoas pretensamente religiosas e crentes, mas que negam a eficácia da fé que professam pelas suas condutas pecaminosas (2 Tm 3.5).

Acredito que uma boa hermenêutica nos previne de equívocos. Isolar o texto do seu respectivo contexto é dar margem para heresias. Dou graças a Deus pelo contexto! É por intermédio dele que eu posso identificar quais eram as intenções originais dos autores bíblicos aos seus destinatários. Sem essa percepção não pode haver uma correta interpretação da Bíblia. O grande problema dos defensores da “contextualização a qualquer custo” é exatamente a falta de uma hermenêutica sadia. Por esse motivo é que existem tantos desvios doutrinários em nossas igrejas.

Talvez, aqueles que pretendem pular o carnaval alegando que é necessário se fazer “fraco para com os fracos” pensem um pouco nisso. Mais uma vez, o jornal Valeparaibano diz que “Para o mestre em ciências da religião pela PUC e professor da Fatea, João Geraldo Júnior, o carnaval vem alcançando as igrejas desde [a] década de 80”.[8] Esse é o retrato de uma igreja que tem falhado em alcançar o pecador da forma correta. Que Deus tenha misericórdia de nós!

Soli Deo Gloria!
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[1] Jornal Valeparaibano, de 08 de fevereiro de 2009. Primeiro caderno, pág. 14.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Revista da Folha de São Paulo, de 11/01/2009. O conteúdo da matéria pode ser encontrado no site www.igrejaemergente.com.br/?p=37
[6] Comentando essa passagem Calvino nos diz que “quando [Paulo] diz que procedia como se vivesse sem lei e como se estivesse debaixo da lei, devemos compreender que ele está se referindo somente à lei cerimonial, porquanto a lei moral era comum tanto a gentios quanto a judeus; e Paulo não pretendia agradar os homens até este ponto”. Em Calvino, João. 1 Coríntios. São Bernardo do Campo, SP. Edições Parakletos, 2003. Págs. 281, 282. Itálico meu.
[7] Op. cit. Pág. 282.
[8] Jornal Valeparaibano, de 08 de fevereiro de 2009. Primeiro caderno, pág. 14.

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