quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Deus nas mãos de pecadores irados*

O pastor congregacional e teólogo estadunidense Jonathan Edwards ficou mundialmente famoso nos âmbitos secular e religioso por ter pregado um dos sermões mais impactantes e conhecidos da história do Cristianismo. Após ter ficado três dias sem comer e dormir, pedindo a Deus que lhe desse a Nova Inglaterra, Edwards, de posse de um manuscrito segurado tão rente aos olhos que tapava seu rosto à multidão (ele era míope), começou a explanar aos seus ouvintes a real e aterrorizante situação dos “Pecadores nas mãos de um Deus irado”, baseando-se apenas em um trecho de Deuteronômio 32.35 (“... a seu tempo, quando resvalar o seu pé). Esse sermão foi proferido na noite de 8 de julho de 1741, na capela de Enfield, no estado de Connecticut (EUA), por ocasião do “Grande Despertamento” ocorrido naquela região.

Mais de dois séculos e meio se passaram, e o sermão de Edwards ainda é lembrado com alguma nostalgia por parte de muitos cristãos hodiernos. As alusões aos ouvintes agarrando-se aos bancos por pensarem que iam cair no fogo do inferno enquanto Edwards pregava são abundantes nos lábios dos pregadores e nas penas (ou teclas) dos escritores das épocas subsequentes. Entretanto, um grave erro aconteceu nessa transição de épocas. Os pregadores modernos presumiram que poderiam aperfeiçoar a abordagem de Edwards, e o resultado disso foi uma verdadeira tragédia para a sã doutrina. Começando por Charles Finney (1792-1895) até aos pregadores contemporâneos, a pregação declinou da centralidade em Deus para as necessidades do homem. A ira do Criador cedeu espaço aos caprichos da criatura nos discursos humanistas, inadequadamente chamados de pregação, fazendo com que a soberania de Deus fosse banida do ideário popular dito evangélico.

Isso resultou em um processo de descaracterização do evangelho. A força e firmeza doutrinária tão característica nos puritanos cedeu lugar a um novo tipo de “fé” que emergia dos ideais iluministas. O pragmatismo finneyano alterou radicalmente o modus operandi da igreja, que agora passou a existir unicamente para agradar aos homens. Os fins passaram a justificar os meios quando o assunto era ganhar os perdidos. “Não importa o método. Se deu certo, é porque é de Deus” – um arroubo triunfalista que sugere a ideia de um “pragmatismo consagrado”[1]. Isso fez com que os pregadores adequassem sua pregação e teologia a essa nova concepção de ser igreja no mundo, mesmo que tal adequação implicasse em flagrante contradição com ensinamentos claros das Escrituras. O sistema calvinista de doutrina foi rejeitado por se mostrar “opressivo” e por impedir a “manifestação da potencialidade humana”, com suas “ênfases na soberania de Deus, na depravação do homem, na escravidão da vontade e na conseqüente incapacidade humana para as grandes escolhas”[2]. A rejeição aos postulados dos reformadores foi deliberada.

Todo esse legado finneyano chegou intacto ao século XXI. Se na época de Finney o pecador era convidado a “aceitar” a Jesus, hoje ele não somente é conclamado a fazê-lo, mas também a “determinar” que seja por Deus abençoado, já que agora um “pacto” foi estabelecido. As pessoas são alimentadas com a ideia de que, agora que são crentes, tem o direito de ser abençoadas, e “ai” de Deus se alguma cláusula nesse “contrato” for violada. Nesse caso, Deus senta calado no banco dos réus para ser julgado pelo homem. Isso sem falar na aversão que os crentes modernos tem a palavras negativas como “ira”, “pecado”, “inferno” etc., palavras essas que foram abolidas do vocabulário de muitos pregadores contemporâneos (a não ser quando se fala da “infidelidade” financeira dos fieis). Para muitos cristãos da atualidade, falar em um Deus irado é uma ofensa grosseira aos ouvidos do cidadão pós-moderno. A própria noção de um Deus irado é incompatível com a sua natureza bondosa de Pai. O homem, pensam eles, não precisa conhecer um Deus irado, e sim, um Deus de amor, que está sempre de braços abertos. Toda essa ordem de coisas faz com que o título do sermão de Jonathan Edwards seja convertido para “Deus nas mãos de pecadores irados”, como bem observou R. C. Sproul, significando algo mais do que uma simples mudança na ordem das palavras.

Felizmente, Jonathan Edwards não viveu o suficiente para ver como os pregadores modernos torceram impiedosamente o seu sermão. Ele morreu de varíola em março de 1758, mas provavelmente morreria de infarto se porventura ainda lhe restasse uns séculos a mais de vida. Fico a refletir no que Edwards pensaria dos tele-evangelistas e “avivalistas” da atualidade, muitos dos quais se auto-intitulam “apóstolos” e “profetas”, que ficam querendo incutir na mente das ovelhas que elas agora podem tudo, inclusive inquirir a Deus, exigindo-lhe a sua parte no acordo. Não conheço nenhum pronunciamento de Edwards sobre esse particular, mas suponho que ele pregaria algo parecido com “Pregadores nas mãos de um Deus irado”. Nesse caso, seria bom que ele ainda estivesse vivo. A menos que novas vozes surjam no meio de todo esse escombro eclesiástico, para que Deus promova outro “Grande Despertamento” em nossos dias.

Soli Deo Gloria!!!

*Esta frase é do R. C. Sproul.
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[1] Termo cunhado por Peter Wagner. Ver PORTELA, Solano. Planejando os rumos da igreja: Pontos positivos e críticas de posições contemporâneas. Nota de rodapé nº 9, Fides Reformata, vol. I, nº 2 (julho-dezembro 1996), 84.
[2] SOUSA, Jadiel Martins. Charles Finney e a secularização da igreja. São Paulo. Edições Parakletos, 2002. Pág. 92.

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quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Sandálias, sexo e terceira idade (o que é que a "Havaianas" tem?)

O que é que sandálias tem a ver com sexo? Para o pessoal das famosas Havaianas, tudo a ver. A marca exibiu, há pouco tempo atrás (e por pouco tempo), uma campanha publicitária (clique aqui) onde uma neta e sua avó conversavam num restaurante. O ator Cauã Reymond entra no recinto, e a avó diz à sua neta que é de um cara desses que ela precisa. Sua neta responde que deve ser muito “chato” casar com um famoso. Então, a avó diz à sua neta: “Mas quem falou em casamento? Estou falando é de sexo!”. Sua neta fica estupefata com a declaração da avó, que completa: “e ainda sou eu que sou atrasada?”. Depois da reclamação de muitos consumidores, a agência responsável pela propaganda resolveu tirá-la do ar. Em contrapartida, outra campanha (clique aqui) foi feita, agora para justificar porque a anterior foi suprimida. Na atual campanha, a mesma vovó diz que “em respeito a elas [às pessoas que reclamaram da propaganda] a Havaianas decidiu tirar o comercial da TV”. Porém, como houve também aqueles que amaram a propaganda, a vovó (com um sorriso mais largo do que o anterior) ainda diz que “em respeito a elas, a Havaianas decidiu manter o comercial na internet” (como se a internet fosse tão inacessível hoje em dia), exaltando a decisão “democrática” da Havaianas. Ela conclui sua participação (se é que será a última, mesmo) dizendo ao telespectador: “viu como eu sou moderninha”?

Não é de hoje que o sexo é o assunto central das propagandas publicitárias. Hoje em dia qualquer comercial, seja de sandálias, postos de gasolina, cerveja (principalmente) e etc. tem que apelar para a sensualidade para se manter vivo num mercado cada vez mais competitivo (se eu não falar de sexo, outro vem e fala). Os publicitários imaginam que, estimulando a libido da massa, o produto terá maior aceitação no mercado. E é exatamente isso que acontece. Se a lógica do capitalismo (selvagem) é criar necessidades para então satisfazê-las, então por que não criar uma necessidade sexual numa sociedade ávida por sexo, com o fim exclusivo de “ganhá-la”? Se esse recurso ajuda, então por que não lançar mão dele? Qual o problema nisso? Se o produto tem a ver com sexo, pouco importa. O que importa é ser “moderninho”.

O que mais me impressionou nisso tudo foi até que ponto uma senhora já de idade se submeteu para ganhar uns trocados (R$). De repente ela nem acredite na bandeira que levantou na propaganda. Mas, quando o dinheiro fala mais alto, até os cabelos brancos baixam a voz. Quantos por cento será que a vovó da Havaianas representa para a parcela da velha-guarda? Será que além dela existem mais vovós e vovôs aderindo a essa ideia? Se a resposta for positiva, quem ficará com a parte “chata” da moral e dos bons costumes?

Não creio que um discurso moralista dará jeito nessa situação. Tudo isso que acontece aponta para a derrocada moral dos nossos tempos. Nossa sociedade assina, dia após dia, o seu próprio atestado de falência. E quando a indecência é intrínseca, não importa a idade. A “Juventude Transviada” (1955) de James Dean já chegou à terceira idade, e nada parece ter mudado. Agora ela é uma “Terceira Idade Transviada” (se depender da vovó da Havaianas). Não sei quantas pessoas reclamaram da propaganda junto aos órgãos públicos, se é que alguém o fez. Ao que tudo indica, a propaganda saiu do ar porque os consumidores reclamaram à própria empresa que a veiculou, e como ela viu que poderia perder dinheiro, tirou-a do ar (somente do “ar” televisivo) e depois se explicou, em outra propaganda, para mostrar o seu “compromisso” com sua clientela. Também não sei se a reclamação foi por causa da propaganda do sexo ou se foi por causa do denegrimento da imagem do pessoal da terceira idade. Se foi pela primeira causa ou pela segunda, ou ainda por ambas, o fato é que a reclamação em si foi um aspecto positivo. Mas, embora haja algum louvor nisso, ainda não é o suficiente. Se os reclamantes não forem transformados em “novas criaturas” (2Co 5.17), continuarão sendo trevas, ainda que guardiões da moral e dos bons costumes. É preciso algo mais do que simplesmente reclamar: “necessário é nascer de novo” (Jo 3.7). E isso não fará com que eles deixem de usar as sandálias Havaianas, e sim, que rejeitem certas "sugestões" de sua parte.

Soli Deo Gloria!!!


P.S.: Ah! Respondendo à pergunta da paráfrase a Carmem Miranda no título desta postagem, a "Havaianas" não apenas calça os seus pés, mas também tem muito "amor" (sexo) pra dar.



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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A propósito do “ET do Panamá”

Na semana passada, mais precisamente na quinta-feira (17/09), o mundo ficou surpreso com a aparição de um animal bizarro, de aparência esquisita, encontrado por quatro adolescentes na localidade de Cerro Azul, no Panamá. Os adolescentes panamenhos disseram que mataram o bicho a pedradas porque temeram ser atacados pela criatura. Pela aparência descomunal e “alienígena” do bicho, as comparações a seres extraterrestres logo não demoraram a aparecer. As autoridades locais ainda não conseguiram identificar o “corpo”, descartando, com isso, todas as especulações circundantes. Porém, alguns biólogos já se antecipam dizendo que o bicho pode ser uma espécie de preguiça.

Fico impressionado como notícias sensacionalistas “bombam” na mídia com a única finalidade de serem desmentidas logo em seguida pelos especialistas de plantão (que tal o “Detetive Virtual” do Fantástico?). Mas, nesse caso do “ET do Panamá”, algo pode ser aproveitado a guisa de ilustração. Para fins didáticos, vou considerar a hipótese dos referidos biólogos como verídica para o que pretendo abordar (ainda que depois seja comprovado que se tratava de uma espécie em extinção. Nesse caso, terei de escrever algo sobre o Evolucionismo). Suponhamos que o bicho se trata mesmo de uma preguiça (lembrem-se: é uma ilustração, e, como tal, tem as suas limitações).

Há muitos crentes hoje que se desculpam de suas “preguiças” (usarei aspas quando for metafórico) atribuindo seus insucessos a uma conspiração maligna (o “ET”, nesse caso). Para os tais, sempre que um filho de Deus fracassa em algum empreendimento é porque a mão do inimigo está por trás. Nesse caso, é necessário passar por uma “sessão de descarrego” ou algo do gênero. Conheço crente que está até hoje desempregado porque fica somente orando em casa, esperando o empregador vir chamá-lo na porta. “Eu estou só vigiando e orando, irmão. E a Palavra diz que ‘Deus não rejeita oração’. A oração do justo pode muito em seus efeitos”. O interessante é que esse mesmo crente que cita de cor Tiago 5.16 (“a oração feita por um justo pode muito em seus efeitos” – ARC) é incapaz de lembrar-se de Provérbios 6.6: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio”; e mais: “Ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono?” (Pv 6.9). ABRE PARÊNTESE. Certo dia eu conversava com um irmão sobre uma situação hipotética que me ocorreu à mente. Ei-la: Conheço um irmão que estava muito desejoso de passar em um concurso público muito concorrido. Muito fervoroso, ele me falou que ia pedir umas orientações ao “apóstolo” fulano de tal, e perguntou o que eu achava da ideia. Eu lhe sugeri que, em vez de ficar correndo atrás do “apóstolo”, que ele consultasse a esposa deste: a apostila. FECHA PARÊNTESE.

Mas isso não é uma particularidade das ovelhas, não. Já ouvi muitos pastores se desculpando de suas “preguiças” ministeriais colocando a culpa nas circunstâncias. Não deu para visitar uma ovelha enferma porque o “diabo” (o “ET”) o enfermou também; não deu para preparar um sermão expositivo para o culto dominical porque “tive que atender a umas urgências” (que, geralmente, não eram mais urgentes do que a pregação). Tudo isso se explica porque hoje a maioria dos pastores se divide entre o ministério e mais um emaranhado de atividades extras, e não dão a devida prioridade ao rebanho que Deus lhes confiou. Essa é a causa, dentre outras, da pobreza dos púlpitos e do raquitismo do rebanho. Se não há tempo para preparar um sermão, então não há nutrição para as ovelhas. Só restam ao rebanho os fast-foods espirituais: contam-se duas ou três piadinhas, mais uma ilustração, uns chavões básicos (de preferência em voz gritante), e pronto. Tudo isso em vinte minutos, no máximo (e quando dá). Aliás, o fast-food é o prato favorito dos preguiçosos: não dá trabalho, é prático e é gostoso. Confesso que, todas as vezes em que não estou com muita coragem para preparar um prato mais salutar, lanço mão de um hambúrguer, no carrinho de lanche mais próximo, para não ter o trabalho de fazer em casa. Sei que não sou o único a fazer isso (“quem não tem teto de vidro que atire a primeira pedra”!). Mas, em se tratando de alimento espiritual, somente o alimento sólido é que pode matar a fome. O resto só distrai a barriga.

Não sei quando é que o caso do “ET do Panamá” será resolvido. Talvez as pesquisas só sejam concluídas quando o assunto cair no esquecimento. Mas uma coisa é fato: o Panamá, a partir de então, não será conhecido apenas pelo seu Canal (o “Canal do Panamá”): agora eles tem um “ET” próprio, que não é aquele hollywoodiano inventado por Steven Spielberg. A não ser que o bicho seja mesmo uma preguiça (para o desespero dos panamenhos e dos crentes preguiçosos).

Soli Deo Gloria!!!
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sábado, 19 de setembro de 2009

Ilustrações do Cotidiano: “Lições que nos dão as cegonhas”

Recentemente, assistindo a um documentário sobre aves, descobri algo muito interessante sobre as cegonhas. Elas cuidam dos filhotes com extrema abnegação e até em prejuízo da própria vida, se for o caso. Quando os filhotes crescem, eles retribuem o cuidado que suas mães lhes dispensaram fazendo o mesmo.

A escolha da cegonha como símbolo do nascimento dos bebês não foi à toa. Na Grécia Antiga, os gregos criaram uma lei chamada “lei da cegonha” (Lex ciconia), baseada exatamente na mutualidade dos relacionamentos entre os filhos das cegonhas e os seus pais, na medida em que estes iam ficando idosos. Quem não cumprisse essa lei era punido com rigor. Na Idade Moderna isso assumiu uma conotação mais simbólica (consequentemente, menos obrigatória!), com a publicação de cartões contendo desenhos de bebês pendurados por uma fralda no bico das cegonhas.

Não é difícil adivinhar onde eu quero chegar com esse exemplo das cegonhas, como já deve ter ficado mais que evidente. O que os filhos das cegonhas fazem quando seus pais se tornam idosos é o que os filhos de nossa sociedade humana não fazem mais há tempos, inclusive muitos cristãos. As crianças de hoje (incluindo as cristãs) não só ridicularizam a estória de que foram trazidas por uma cegonha quando nasceram (já que os meios de comunicação lhes proporcionam que se tornem “experts” em sexualidade em apenas alguns cliques - seja de controle remoto ou mouse), mas também acabam abandonando seus pais idosos nos lares e asilos existentes por aí (esse “por aí” não foi por acaso). Afinal de contas, quem está disposto a ficar perdendo tempo e se estressando com um “estorvo” dentro de casa, que fica se esquecendo das coisas (Alzheimer), fazendo pipi e "incomodando" o tempo inteiro? O resultado disso é que muitos idosos tem se transformado em verdadeiros “órfãos de filhos vivos”.

Não creio que a reversão desse quadro se dará quando os pais resgatarem a estorinha da cegonha nos seus lares, contando-a aos seus filhos, e que estes acreditem. Não preciso perder tempo para provar que isso é pura ingenuidade. Também não sou contra a existência de asilos. Sei que existem casos em que a escolha por um asilo é a alternativa mais viável. O que me intriga, contudo, é saber que, em muitos casos, viabilidade é confundida com conveniência. Penso que o mandamento bíblico para os filhos honrarem os seus pais (Êx 20.12; Ef 6.2,3) significa muito mais do que simplesmente obedecê-los. Creio que o conceito de honrar é muito abrangente para se restringir a uma mera submissão. Para mim, honrar significa, além de tudo, amar; zelar; cuidar. “Deixará o homem pai e mãe” (cf. Gn 2.24) não significa “desprezará o homem seus genitores”. Sorte da cegonha, que, por mais idosa que esteja, nunca precisará temer ser mandada para um asilo por causa do descaso dos seus filhos. Poderíamos dizer o mesmo dos humanos (e de muitos crentes)?

Que Deus nos ajude!

Soli Deo Gloria!!!
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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

“Lutas por fora, temores por dentro” – Uma relação de dor, cansaço e graça na vida do apóstolo Paulo

A imagem que muitas vezes nutrimos de um Paulo robusto, inabalável e totalmente destituído de conflitos emocionais cai por terra diante da sua Segunda Carta aos Coríntios. Em nenhuma das suas treze cartas as fraquezas do grande apóstolo são tão evidenciadas (e confessadas) quanto nessa. E ele sintetiza muito bem isso ao dizer que suas atribulações se traduziam em “lutas por fora” e “temores por dentro” (2Co 7.5).

No início da carta o apóstolo nos dá pistas de alguns dos graves perigos aos quais ele havia sido submetido – as “lutas por fora”. Somos informados que, na sua viagem de volta para a Ásia, Paulo e seus companheiros foram tomados por uma tribulação sobre-humana e desesperadora.
“Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos da própria vida” (2Co 1.8 – itálico meu).
A ideia no original grego para “acima das nossas forças” é a de alguém que está sendo pressionado acima da medida; além de sua capacidade. Comentando essa passagem, Calvino observa que “esta metáfora é tomada de uma pessoa que sucumbe sob a pressão de um fardo pesado ou de navios que afundam em razão de sua sobrecarga”[1] – uma metáfora bastante apropriada, diga-se de passagem, tendo em vista que Corinto era uma cidade portuária. Não sabemos ao certo a qual(is) evento(s) específico(s) Paulo está se referindo, mas é bastante provável que ele esteja aludindo à sua estadia em Éfeso, que foi bastante conturbada (At 19.23ss), apesar de Lucas não nos deixar essa impressão. No entanto, em passagens paralelas, Paulo nos informa, por exemplo, que lutou com “feras” em Éfeso[2] (1Co 15.32) e que “muitos adversários” se insurgiram para lhe fechar a “porta grande e oportuna” que Deus lhe havia aberto para a evangelização (1Co 16.9). Há fortes indícios de que esses “adversários” aos quais Paulo se refere tenham sido seus patrícios judeus. Relembrando aos presbíteros de Éfeso como havia sido a sua conduta e estadia naquela cidade, Paulo lhes lembra das provações que, “pelas ciladas dos judeus”, lhes sobrevieram (At 20.19). É provável que os judeus tenham sido os algozes de algumas das possíveis prisões que Paulo enfrentou durante seu trabalho em Éfeso, uma vez que ele inclui na sua lista de aflições as “muitas prisões” que havia enfrentado no seu ministério até àquele momento (2Co 11.23) [3]. Mas não foram somente essas as “lutas por fora” que o apóstolo aos gentios enfrentou. Respondendo àqueles que questionavam sua autoridade apostólica, Paulo apresenta-lhes suas credenciais, incluindo entre elas seus sofrimentos por amor ao evangelho:
“[...] em trabalhos muito mais; muito mais e prisões; em açoites, sem medida; em perigos de morte, muitas vezes. Cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites menos um; fui três vezes fustigado com varas; uma vez, apedrejado; em naufrágio, três vezes; uma noite e um dia passei na voragem do mar; em jornadas, muitas vezes; em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos entre patrícios, em perigos entre gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigo entre falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias muitas vezes; em fome e sede, em jejuns, muitas vezes; em frio e nudez” (2Co 11.23-27).
A tudo isso Paulo denomina de “coisas exteriores” (2Co 11.28). Paulo é tão enfático nessa questão que ele mesmo encarou todas aquelas tribulações como uma verdadeira “sentença de morte”, e brinda seu livramento delas como se fosse a sua própria ressurreição dentre os mortos, operada pelo Deus ressuscitador (2Co 1.9, 10). Calvino observa que, quando Paulo afirma que havia se desesperado da própria vida, ele “não está levando em conta o auxílio divino, e sim está nos dizendo que avaliava suas próprias condições, e não há dúvida de que toda força humana vacila ante o temor da morte”[4]. Paulo reconheceu a sua total incapacidade para superar toda aquela situação, e nada lhe restou senão a certeza de que iria sucumbir se Deus não lhe estendesse a mão. Ele chega à conclusão de que o propósito de tudo isso era para que ele não confiasse em si mesmo, e sim, em Deus (2Co 2.9), porque é na nossa fraqueza que o poder de Cristo é aperfeiçoado (cf. 2Co 12.9).

Essas “lutas por fora” eram acompanhadas de violentos “temores [phobias] por dentro”, que consumiam o sossego do apóstolo. Tudo indica que na sua viagem de volta para a província da Ásia, Paulo foi tomado de uma profunda depressão, e era exatamente a igreja corintiana que estava no cerne dela. A relação do apóstolo com essa igreja sempre foi muito difícil, porque ela era uma igreja muito problemática. Paulo havia enviado uma carta, “no meio de muitos sofrimentos e angústias de coração..., com muitas lágrimas” (2Co 2.4), por meio de Tito, seu colaborador. Essa carta está situada entre 1 e 2 Coríntios, e não foi preservada (não a temos). O objetivo de Paulo com essa carta “severa”, como muitos a chamam, era simplesmente para que os coríntios “conhecêsseis o amor que vos consagro em grande medida” (2 Co 2.4). Paulo esperava ansiosamente o relatório de Tito para saber que efeito a carta havia produzido sobre os coríntios, mas parece que Tito havia perdido o último barco rumo à Macedônia, sendo forçado a viajar por terra, desencontrando-se do apóstolo (cf. 2Co 2.12-13 e At 20.1-2). Isso serviu para aumentar ainda mais a apreensão de Paulo. “As coisas em Corinto iam tão mal, que Paulo estava ansioso com seus resultados, mais do que costumeiramente”[5]. O apóstolo mesmo nos diz que sua ansiedade era tanta que ele sequer conseguiu aproveitar a “porta” que o Senhor lhe tinha aberto para pregar o evangelho em Trôade (“não tive, contudo, tranqüilidade no meu espírito, porque não encontrei o meu irmão Tito”- 2Co 2.12, 13). Paulo nos fala que essa ansiedade foi causada pela sua extrema “preocupação com todas as igrejas”, que diariamente pesava sobre ele, “além das coisas exteriores” (2Co 11.28). Contudo, nada estava perdido. Da mesma forma como o “Deus que ressuscita os mortos” livrou o apóstolo das “sentenças de morte” (2Co 1.9 – as “lutas por fora”), esse mesmo Deus estava prestes a aliviar os “temores por dentro” do apóstolo que Ele mesmo comissionara, enviando-lhes Tito. A chegada de Tito foi tão confortadora para Paulo que ele chega a dizer que isso foi mais uma intervenção do “Deus que conforta os abatidos” (2Co 7.6). As notícias trazidas por Tito de Corinto reanimaram o apóstolo e fez com que ele recobrasse o seu ânimo ministerial. A mensagem contida na “carta severa” tinha surtido efeito na igreja corintiana. Paulo alegrou-se porque a carta havia entristecido os coríntios, mas não com uma “tristeza segundo o mundo”, que “produz morte”, e sim, com uma “tristeza segundo Deus”, que “produz arrependimento para a salvação” (2Co 7.10). A igreja de Corinto (ou pelo menos boa parte dela) havia, finalmente, aceitado a Paulo como um verdadeiro apóstolo de Cristo, ao contrário de muitos outros “falsos apóstolos” que se insurgiram contra ele e que estavam persuadindo a igreja corintiana a seguir suas práticas (2Co 11). Tito relatou a Paulo do “pranto”, da “saudade” e do “zelo” que os coríntios ainda nutriam por Paulo (2Co 7.7), e isso foi o suficiente para que grande parte dos “temores” do apóstolo se dissipasse.

O exemplo de Paulo é encorajador para o povo de Deus de todas as épocas. O mesmo Deus que assistiu o apóstolo nas suas fraquezas ainda é o mesmo, “ontem, hoje e eternamente” (cf. Hb 13.8). Infelizmente, às vezes encaramos os relatos bíblicos como abismos intransponíveis, com mais de dois mil anos de diâmetro, como se Deus não mais socorresse aqueles que Lhe pertencem. “Temores por fora e lutas por dentro” é a causa do desânimo de muitos pastores hoje em dia, desembocando por vezes até em desistência do ministério. Isso é agravado ainda mais quando os “oportunistas da fé”, muitos dos quais se autodenominam “apóstolos” e “profetas” hoje em dia, angariam sucesso, glória pessoal e prosperidade à custa de suas ovelhas, fazendo com que os números dos templos cheios (mesmo que para isso os bolsos das ovelhas se esvaziem) apontem o fracasso daqueles que teimam em permanecer fieis à Palavra e resistentes à sedução das estratégias de marketing como meio de alavancar seus ministérios. Para Paulo, tais pessoas não passam de “falsos apóstolos, obreiros fraudulentos”, que se transformam em ministros de Cristo, mas que não passam de verdadeiros emissários de Satanás (2Co 11.13-15). Urge que pastores íntegros e dedicados à Palavra levantem suas vozes do púlpito contra essas coisas, protegendo suas ovelhas dos lobos, ainda que para isso eles tenham que se utilizar de “palavras severas”. Certamente, isso trará consigo “lutas por fora e temores por dentro”. Entretanto, é preciso crer que a graça de Cristo triunfará sobre a dor que os “espinhos” da vida (e do ministério) causam aos servos bons e fieis (2Co 12.7-10).


Soli Deo Gloria!

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[1] Calvino, João. 2 Coríntios. Editora Fiel, 2008. Pág. 33.
[2] Não devemos entender “feras” no seu sentido literal, uma vez que a expressão que a antecede, “como homem”, significa “falar figuradamente”.
[3] Para mais detalhes, ver Bruce, F. F. Paulo, o apóstolo da graça – sua vida, cartas e teologia. Shedd Publicações, 2003. Pág. 289.
[4] Op. cit. Pág. 34.
[5] Calvino, João. Op. cit. Pág. 72.

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