quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Em 2010, quero entrar “de sola”!

“Entrar solando” (ou, “de sola”) é uma expressão muito comum no mundo do futebol. Ela é usada toda vez que, numa disputa de bola, o jogador entra com as travas (a sola, nesse caso) da sua chuteira por cima da bola, fazendo com que o adversário se intimide na disputa. Se o oponente não se intimidar e resolver fazer o mesmo, aí a coisa pode ficar realmente feia. Um dos dois, ou até mesmo ambos, poderão se machucar seriamente. Jogadas desse tipo são consideradas desleais e até mesmo antidesportivas, e os infratores, além de serem punidos com cartão amarelo ou vermelho no momento da partida, podem até mesmo pegar um “gancho” do Supremo Tibunal de Justiça Desportiva (STJD).

Mas não é dessa forma futebolística que eu pretendo “entrar solando” nesse ano que ora se inicia. Apesar de eu gostar muito de futebol, visualizo uma causa infinitamente mais nobre para desejar fazer isso. Em 2010, desejo ardentemente entrar solando com os famosos “Solas” da Reforma: Sola Scrpitura, Solus Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Soli Deo Gloria. São essas as “solas” que eu pretendo calçar.

Quero entrar de “Sola Scriptura” em toda e qualquer doutrina ou prática que relegue a Bíblia a um plano inferior e secundário, e não a coloque no seu devido lugar de única regra de fé e prática do povo de Deus. Entrar de “Sola Scriptura” se faz necessário porque muitas pessoas e igrejas ditas evangélicas nos dias de hoje tem dado mais crédito às supostas “novas revelações” do que à verdadeira Revelação canônica de Deus – as Sagradas Escrituras. Do mesmo modo como a igreja medieval se afastou das Escrituras, introduzindo elementos estranhos (“preceitos de homens” – Mc 7.7) ao culto e à teologia, a igreja contemporânea tem incorrido no mesmo erro. E a sola (ou, o Sola) vale também para todos aqueles que questionam e atacam a infalibilidade, inerrância e inspiração da Escrituras, como os liberais, neo-ortodoxos e Cia. Isso só aumenta ainda mais a nossa urgência em reafirmar o brado dos reformadores de “Sola Scriptura”(Somente as Escrituras).

Quero entrar de “Solus Christus” em todo e qualquer ensino que descentralize ou destrone a Cristo do seu devido lugar de honra e glória. Entrar de “Solus Christus” se faz necessário porque Jesus não tem sido mais o centro da pregação em muitos púlpitos. Os “testemunhos” tomaram o lugar da pregação da cruz; os “zaqueus” e os “lázaros” também. Além disso, o espírito ecumênico de nossa época está fazendo com que Cristo não seja mais exclusividade para muitos pessoas. Daí o porquê de muitos televangelistas chamarem a budistas, espíritas, mulçumanos e etc. de “irmãos”. Abandonaram a verdade de que existe apenas um mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2.5). A igreja romana fez e continua fazendo o mesmo, ao colocar Maria como adjuntora na salvação. Os reformadores não se conformaram com essas coisas, motivo pelo qual o brado de “Solus Christus” (Somente Cristo) foi vigorosamente entoado.

Quero entrar de “Sola Gratia” no esforço humano (sinergismo) para a sua salvação, tanto quanto nas doutrinas e teologias que o instigam a pensar assim. Entrar de “Sola Gratia” se faz necessário porque muitas pessoas pregam por aí que “Deus já fez a parte dele, basta que façamos a nossa”. Motivados por isso, os pecadores vão a Cristo pensando que estão fazendo um grande favor para Deus ao “cooperar” com ele na salvação. Quanta mentira e ilusão! A Bíblia é suficientemente clara ao afirmar que “não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16). PONTO. Numa cultura onde o semi-pelagianismo e o arminianismo quase que imperam, verdades como as Antigas Doutrinas da Graça não tem encontrado o mesmo espaço que outrora encontrou. Cabe a nós, então, reafirmá-las como o bom o velho “Sola Gratia” (Somente a Graça).

Quero entrar de “Sola Fide” em toda e qualquer teologia, pregação ou ensino que pregue outro meio para a justificação do homem além da fé que o próprio Deus o concede. Pedro se refere aos crentes como aqueles que “obtiveram fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 1.1). Ora, o que é a fé salvífica, senão a capacidade que o próprio Deus concede a nós, os eleitos (cf. Tt 1.1), para que creiamos na perfeita justiça do Seu Filho, em prejuízo da nossa própria? Esta foi uma verdade que a igreja romana rejeitou. Quer dizer, ela cria, sim, que somos justificados pela fé, mas não pela fé somente, e isso faz toda a diferença. Foi por isso que Lutero disse que a justificação pela fé é “o artigo de fé mediante o qual a igreja permanece de pé ou cai”. À maneira da igreja romana, muitas igrejas ditas protestantes tem se afastado dessa verdade, pregando que a fé carece de “algo mais”. É por essas e outras que entrar de “Sola Fide” (Somente a Fé) se faz necessário.

Finalmente, desejo entrar de “Soli Deo Gloria” em 2010, e penso que este seja o “Sola” mais caro de todos (inclusive para mim), pois ele derruba toda e qualquer pretensão e arrogância humanas. Depois de discorrer largamente sobre a doutrina da salvação, Paulo conclui a seção doutrinária da sua carta aos Romanos com uma das mais belas doxologias encontradas nas Escrituras:

Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria quanto do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11.33-36).

Agora dá pra saber de onde os reformadores tiraram todo o seu teocentrismo ao bradarem o “Soli Deo Gloria”. Michael Horton acertadamente escreveu que “pregar a Escritura é pregar a Cristo; pregar é Cristo é pregar a cruz; pregar a cruz é pregar a graça; pregar a graça é pregar a justificação; pregar a justificação é atribuir o todo da salvação à glória de Deus e responder a essa Boa Nova em grata obediência por meio de nossa vocação no mundo”[1]. Sinceramente, qualquer sistema teológico de doutrina que procure de alguma forma limitar Deus em seus atributos (arminianos e afins) não pode bradar o “Soli Deo Gloria” sem nenhum senão. Mas não é somente por conta de questões soteriológicas e doutrinárias que se faz necessário reafirmarmos que somente a Deus seja dada a glória. Entrar de “Soli Deo Gloria” se faz necessário porque muitos cristãos (pastores, ovelhas, “apóstolos”, blogueiros, “profetas”, curandeiros, cantores-astros, etc.) tem tentado usurpar o louvor, a honra e a glória que somente a Deus pertencem, chamando a atenção para si mesmos (é a “Síndrome do Zaqueu” – não o da Bíblia, mas o da música). Mas não se iludam os tais, pois o próprio Deus mesmo diz que não dará a sua glória a outrem (Is 42.8). Isso quer dizer que não apenas os construtores da autojustificação, mas também os construtores da auto-imagem são incapazes de dizer que “Somente a Deus a Glória”.

Oro a Deus para que Ele me dê forças para cumprir esse propósito de “entrar solando” nesse ano de 2010. Que eu jamais me esquive de entrar “de Sola” quando a Verdade estiver em jogo. Que eu jamais use de deslealdade quando estiver numa disputa, mas que eu me valha apenas da Sagrada Escritura. E que jamais eu alivie as canelas ou os tornozelos dos erros teológicos que tentam ofuscar os “Solas” que os reformadores nos legaram. Que sejam essas, de fato, as Solas que calcem os meus pés.

Sola Scriptura, Solus Chistus, Sola Gratia, Sola Fide, Soli Deo Gloria!!!


[1] Reforma Hoje. Editora Cultura Cristã, 1999, pag. 124

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Dos "milagres" que não glorificam a Deus

Eu não pretendia escrever sobre isso hoje. Aliás, eu nem pretendia escrever hoje, uma vez que minhas atenções agora estão voltadas para minha mudança de cidade e com tudo o que isso acarreta (para quem não sabe, fui transferido para Santarém-PA e esta é a minha última semana aqui em SP). Mas, é que eu me deparei com algo que realmente me instigou. E me irritou! Na realidade, já faz tempo que coisas desse tipo tem me irritado. Não aguento mais ouvir falar em milagres, curas e “unções” que estão sendo derramadas por aí em nome de Deus, mas que em nada O glorificam. Sinceramente, sou meio desconfiado (ou “desconfiado e meio”, se preferirem) com certos “milagres” que tem sido divulgados por aí. Não apenas pelo fato de alguns serem extremamente bizarros e duvidosos, mas principalmente pelo fato de que a maioria deles não tem como meta o Soli Deo Gloria.

Acessando a internet hoje, “sem querer querendo” me deparei com mais um caso desses. Foi o do Valdir, “o homem que fala sem língua”.

Valdir de Souza era viciado em drogas há mais de 12 anos. Na madrugada do dia 28 de maio de 93, marcou um encontro com seus colegas em sua casa para mais uma noite de bebedeira. Naquela madrugada, embriagaram-se e drogaram-se até que Valdir começou a passar mal. Seu coração começou a bater forte e com movimentos taquicardíacos. Nisso, sua língua adormeceu e enrolou para dentro da garganta.


Ele conta que pediu ajuda aos seus colegas, porque já estava ficando sufocado. Apavorados, um deles tentou puxá-la para fora e, como não conseguia sustentá-la, segurou-a com sua própria boca, prendendo-a entre os dentes e cortou-a na metade.


As forças se acabaram e Valdir sentiu-se separado do seu corpo, e que seu espírito se dirigia para as trevas caminhando para o abismo. Ao vê-lo desmaiado, seus amigos o levaram para o Hospital Municipal do Tatuapé, onde teve sua língua completamente amputada pelos médicos. Desenganado pela Medicina, sem poder falar, recebeu a visita de sua mãe que lhe falou sobre Jesus Cristo. Ele fez um voto com Deus: que ao sair do hospital iria a uma igreja. Assim fez. Pegou uma Bíblia emprestada e foi. No momento em que era feita a oração pelos dons espirituais, foi à frente. Na oportunidade, aceitou a Jesus Cristo como Salvador de sua alma.


Durante a oração, pediu a Deus para que parasse de babar, voltasse a sentir paladar e que passasse a falar novamente. Segundo suas palavras, naquele momento a unção do Espírito Santo desceu sobre aquele lugar. Sentiu como se estivesse flutuando e uma língua invisível começou a bater de um lado para outro em sua boca. Disse ele: “Comecei a falar em línguas estranhas e a primeira palavra que pronunciei foi uma glorificação a Deus. Hoje falo, alimento-me normalmente, sinto paladar e paz completa com Deus”

[Fonte: clique aqui].

Sinceramente, a ideia de alguém flutuando com uma língua invisível batendo de um lado para o outro em sua boca é simplesmente inconcebível (para não dizer ridícula) para mim. E o pior de tudo é que pessoas assim geralmente acabam se transformando em pregadores itinerantes! Não. Eu não estou, aqui, duvidando se Deus ainda opera milagres nos dias de hoje. Creio, sim, que haja casos genuínos de curas operadas por Aquele que governa os céus e a terra. Contudo, não creio que todos os que arrogam para si legitimidade sejam mesmo genuínos. Além das muitas farsas e bizarrices flagrantes, há também muitas “atitudes suspeitas” naqueles que nos dizem que o que eles estão fazendo é para a glória de Deus.

Casos como o do Valdir tem sido o motivo da superlotação de muitos templos ditos evangélicos espalhados por esse país afora. As pessoas são atraídas não pelo Deus que operou o milagre, e sim pelo milagre em si mesmo. A situação é agravada ainda mais quando o caso recebe atenção da mídia, onde a pessoa que recebeu o “milagre” é convidada a dar o seu testemunho em algum programa de televisão famoso. E o curioso é que ninguém se interessa pelos milagres “ordinários”, como o abandono da mentira, da prostituição, da inveja, da malícia, do dolo, das relações extraconjugais, da ganância e das manifestações mais grotescas (e sutis, também) de pecado, e sim, pelos milagres sobrenaturais, como galinhas falando em línguas, pessoas que morreram e voltaram à vida, o câncer que desapareceu, homens que falam sem a língua e coisas do tipo. Para se ter uma ideia disso, em um dos programas do “apóstolo” Valdemiro Santiago, ele chegou ao ponto de dar um sabonete usado por ele a uma de suas ovelhas, para que esta fosse curada de uma certa enfermidade. E o pior de tudo é que essa tal senhora voltou depois para dar o seu testemunho dizendo que o sabonete usado pelo “apóstolo” estava realmente ungido por Deus, pois ela havia sido curada de fato! “Sabonete ungido”… Dá pra acreditar?!

Há tempos atrás eu diria que não consigo entender como é que as pessoas se deixam enganar a tal ponto. Mas hoje eu nem me pergunto mais, porque penso que já sei o porquê. Fico com Paul Washer, que disse que “os falsos profetas são o castigo de Deus para um povo rebelde”. PONTO. Não me surpreendo mais com essas esquisitices que acontecem no mundo gospel, porque foi o próprio apóstolo Paulo quem disse que nos últimos dias as pessoas procurarão pregadores que satisfaçam a coceira dos seus ouvidos (2Tm 4). E o fato é que, onde Deus não for verdadeiramente glorificado, a coceira só aumentará (para a própria destruição de quem a sente e de quem a “resolve”).

Soli Deo Gloria!

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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Sobre os textos supostamente “arminianos” da Bíblia[3] – Análise de 2 Pedro 1.9

Pois aquele a quem estas coisas não estão presentes é cego, vendo só o que está perto, esquecido da purificação dos seus pecados de outrora.

(Almeida Revista e Atualizada).

[Introdução]

Quando comentei com um amigo que analisaria mais uma passagem de 2 Pedro nessa minha série sobre os supostos textos “arminianos” da Bíblia, ele rapidamente exclamou: “Mais uma?! Desse jeito você vai deixar a impressão de que Pedro era mesmo arminiano”! É óbvio que ele quis apenas fazer uma brincadeira, visto que também é reformado. Na realidade eu não pretendia, de início, analisar o texto que ora estou considerando. Minha intenção inicial era a de analisar, em 2 Pedro, apenas os dois textos que já analisei. Mas, lendo a carta novamente, me deparei com este de agora. E fiquei sobremodo inquieto. Comentando com outro amigo sobre essa mesma questão, ele me disse que nunca tinha visto os arminianos usarem esse texto contra os calvinistas. Como eu também nunca vi, fiquei perguntando para mim mesmo se eu não estaria dando um tiro no próprio pé ao mostrar aos arminianos algo que nem eles mesmos tinham visto. E a conclusão a que cheguei foi a de que é justo admitirmos quando estamos em dificuldades diante de um texto de difícil interpretação. Todavia, o que tenho sempre em mente é que “a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35), muito menos contradizer-se. Isso é o que deve nortear toda a nossa hermenêutica e exegese, e nos motivar a ir em busca de respostas para questões tão aparentemente insolúveis como esta.

Como sempre proponho nas minhas abordagens, vamos analisar o referido versículo por partes e dentro do seu contexto, para que possamos obter uma compreensão mais consistente e adequada do seu real significado. Isso evitará que incorramos em interpretações errôneas do texto sagrado.

Só gostaria de chamar a atenção dos leitores para algo que julgo ser essencial, antes de adentrarmos na análise do texto propriamente dito. Penso que a chave hermenêutica para a compreensão de toda a segunda carta de Pedro esteja no seu primeiro versículo, onde o apóstolo endereça a sua carta “aos que conosco obtiveram fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”. O que é que a justificação pela fé está fazendo num contexto onde o foco de Pedro é alertar os crentes sobre a falsa doutrina escatológica e ética dos falsos mestres? Resposta: somente os que creem na perfeita justiça de Cristo[1] é que receberão de Deus “todas as coisas que conduzem à vida [eterna] e à piedade” (2Pe 1.3) e todas as suas “preciosas e mui grandes promessas”, para que por elas os mesmos possam se tornar “co-participantes da natureza divina” e livrar-se da “corrupção das paixões que há no mundo” (2Pe 1.4). Mais uma vez repito: Pedro está escrevendo para a igreja. Isto posto, vamos ao texto de 2Pe 1.9.

[Análise]

Em primeiro lugar, Pedro fala sobre certas “coisas” que não estão presentes na vida dos falsos crentes (“Pois aquele a quem estas coisas não estão presentes”). Que “coisas” são essas? Vejamos 2Pe 1.3-8:

    • 3 Visto como, pelo seu divino poder, nos tem sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude,
    • 4 pelas quais nos tem sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos das paixões que há no mundo,
    • 5 por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa a virtude; com a virtude o conhecimento;
    • 6 com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio a perseverança; com a perseverança a piedade;
    • 7 com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor.
    • 8 Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que não sejais inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo.

Já no versículo 3 Pedro nos fala algo interessantíssimo e crucial. Ele diz que todas as coisas que nos conduzem à vida [eterna] e à piedade nos foram doadas. Fé, virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade, fraternidade e amor são coisas que nós nunca conseguiríamos produzir sozinhos – é dom de Deus. E esse dom visa exatamente a que não sejamos “inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 8). Ora, se tais coisas não estavam presentes na vida dos falsos cristãos, é porque eles nunca haviam sido agraciados por Deus da mesma maneira especial como os verdadeiros crentes o foram. Por este motivo é que eles eram inertes e infrutíferos. Tais dons de Deus são o indicador infalível que distingue a verdadeira religião de uma mera profissão de fé, aquela “fé morta” da qual Tiago fala (Tg 2.14-26). Charles Spurgeon falou sobre isso de forma magistral, quando disse que “a profissão de fé sem a graça divina é a pompa funerária de uma alma morta”.

Para reforçar mais ainda seu argumento, em segundo lugar Pedro diz que quem não tem nenhuma das qualidades supracitadas é “cego, vendo só o que está perto”. A palavra grega que ele usa para cego é a palavra τυφλος (typhlos), que também é usada no NT com seu sentido metafórico de “cegueira mental ou espiritual” (cf. Mt 15.14; 2Co 4.4). Sendo assim, não há contradição alguma no fato de Pedro dizer que os tais são cegos e ainda assim enxergam apenas o que está perto deles. Minha opinião é que aqui Pedro está apenas sendo irônico. Basta lembrarmos que uma das coisas que os falsos mestres negavam era exatamente o retorno triunfal de Cristo, que eles julgavam deveras demorado, para não dizer ilusório (2Pe 3.4,9). E o que Pedro está querendo dizer é que qualquer um que tenha sua visão limitada a esta vida terrena sofre de cegueira espiritual. Em outras palavras, é como se ele quisesse dizer: “Vejam o quão cegos eles são! Pois não são capazes de enxergar algo que ainda está ‘longe’ do alcance de suas medíocres visões”. Uma santa ironia! [Em minha análise de 2 Pedro 2.1, mostrei que alguns adjetivos que Pedro usa para qualificar os falsos crentes indicam que os tais jamais foram salvos. Por isso, não pretendo me estender mais quanto a este particular].

Mas, então por que Pedro falou que os falsos crentes foram um dia purificados dos seus pecados de outrora? Será que existe um outro sentido para a palavra “purificação”?

Bem. A esta última pergunta eu respondo que “sim”, que Pedro usou a palavra “purificação” com um outro sentido diferente daquele que comumente extraímos quando fazemos uma leitura superficial do texto, o que faz com que ele se pareça mesmo “arminiano”. Então, a que Pedro estava se referindo quando falou da “purificação” dos antigos pecados dos falsos crentes? Minha resposta é: ao batismo. E vou tentar explicar o porquê dela.

Pra ser sincero, eu não pude consultar a opinião de outros comentaristas sobre a passagem em questão porque não possuo nenhum comentário sobre a mesma (nem sobre as cartas de Pedro). Eu deduzi a opinião que ora sustento por um breve estudo que fiz do texto grego (este, pelo menos, eu tenho). Mas, para a minha felicidade (e surpresa, também), descobri que essa opinião é sustentada também por Simon Kistemaker, famoso comentarista bíblico reformado e sucessor do erudito William Hendriksen. Eis o seu parecer sobre o texto que estamos considerando:

As palavras de Pedro, purificada de seus pecados passados, dizem respeito ao batismo. Estão de acordo com o comentário de Paulo sobre a igreja: “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra” (Ef 5.25,26; ver também 1 Pe 3.21). O batismo é o símbolo dessa purificação, e a morte sacrificial de Jesus na cruz é uma realidade.

Com o termo passados, Pedro indica alguém que vivia em pecado, converteu-se e foi batizado. Talvez essa pessoa não tenha percebido a importância dessa purificação e, portanto, não tenha rompido com seu passado, mas misturado sua vida mundana com o viver cristão. Talvez ela tenha gradualmente se separado de seu compromisso com Cristo ao esquecer-se da importância de seu batismo e ao voltar para sua antiga vida pecaminosa[2].

Infelizmente, Kistemaker não foi tão profundo em sua análise quanto eu esperava que ele fosse, mas também não pretendo, aqui, “remendar” o trabalho de tão respeitado e competente teólogo. Apenas desejo fazer mais algumas observações que julgo relevantes à questão.

A palavra que Pedro usa para “purificação”, no texto que estamos considerando, é a palavra grega καθαρισμου (katharismou), derivada de καθαρος (katharos), termo que significa, literalmente, “limpo”; “puro”. Jesus usou esta palavra nas suas bem-aventuranças, quando quis se referir aos “limpos” de coração, que verão a Deus (Mt 5.8 – cf. Sl 24.4). Fiz questão de expor isso para mostar que em alguns casos a palavra katharos era usada no sentido de uma pureza espiritual, e não apenas física (Ap 15.6) ou ritual (Lc 17.14; Rm 14.20; Hb 1.3)[3]. Penso que não seria honesto de minha parte esconder essa verdade, principalmente daqueles que hão de discordar do ponto de vista reformado que defendo. Entretanto, meu argumento é que Pedro não empregou a palavra katharismou no seu sentido de purificação espiritual, e minhas razões para tal posicionamento são bem simples. A primeira é que, se Pedro quisesse mesmo se referir a uma verdadeira purificação espiritual, então não faltariam para os falsos crentes certas “coisas” como fé, virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade, fraternidade e amor, coisas essas que o próprio Pedro diz que eram completamente ausentes nos tais (2Pe 1.3-9). Minha segunda razão, semelhante à anterior, é que, se os tais tivessem sido mesmo purificados espiritualmente, então Pedro não deveria tê-los chamado de “cegos”, já que tal “purificação” deveria ter sido integral. Talvez ele devesse ter usado termos mais amenos, como “fracos”, “imaturos” ou coisas do tipo. Essa proposição é simplesmente absurda! Pedro não falhou em tachar os falsos crentes de cegos, nem de dizer que Deus não doou a eles as coisas que doou aos verdadeiros crentes. Pedro foi inequivocamente exato!

Tendo chegado à conclusão[4] de que Pedro não estava se referindo a uma purificação espiritual, precisamos fundamentar melhor nossos argumentos em prol de uma purificação ritual – o batismo, nesse caso. Mais uma vez, apelarei para o texto grego e para um princípio básico da hermenêutica (de uma boa hermenêutica), a saber, o de averiguar o uso que o mesmo autor faz de um determinado termo em outras passagens de sua lavra. Mas nesse caso eu não me referirei ao termo grego katharismou, e sim à palavra “purificação”.

Se não for determinante, é no mínimo significativo o fato de que a palavra que Pedro usa para “purificar”, em sua primeira carta, não tenha sido a palavra katharismos, e sim a palavra hegnikótes, que é oriunda do verbo αγνιζω (hagnizo), que também significa “purificar”. Hagnizo (e seus cognatos) é o termo que os autores do NT geralmente preferem quando o assunto é purificação moral e espiritual. Antes de dar mais explicações, vejamos o texto em 1 Pedro:

    • 1Pe 1.22: “Tendo purificado [hegnikótes] a vossa alma, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente”.

É interessante notar que essa palavra (hegnikótes) e seus cognatos (hagnizo e hagnismos) são usados apenas duas vezes, em todo o NT, com o sentido próprio de “purificação ritual” (em Jo 11.55 e At 21.26). No restante das ocorrências, ela assume o sentido de uma purificação moral e espiritual (cf. Tg 4.8; 1Jo 3.3). Ora, se Pedro quis mesmo dizer (em 2Pe 1.9) que os falsos crentes tiveram suas almas moral e espiritualmente purificadas, por que será que ele não usou o mesmo termo que ele havia usado em sua primeira carta? Resposta: porque ele não estava se referindo ao mesmo tipo de purificação, nem ao mesmo tipo de pessoas.

Isso me levar a crer que Pedro estava se referindo a uma “purificação de superfície”, e não de natureza, e um próprio exemplo que ele usa na mesma carta (2Pe) confere com essa perspectiva. Numa quase evidente referência ao batismo (em águas), Pedro compara os falsos crentes a uma porca que volta a revolver-se na lama depois de ter sido lavada (2Pe 2.22). Apesar de eu já ter dissertado um pouco sobre esse texto em outra postagem, penso que seja oportuno fazê-lo novamente aqui. Note que Pedro diz que o banho não mudou em nada a natureza da porca, pois ela voltou para a lama logo na primeira oportunidade. Ele aplica esse adágio popular aos falsos crentes. Mesmo que se batizem, nunca serão purificados de fato; mesmo que se batizem, nunca poderão obter “fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 1.1); mesmo que se batizem, nunca poderão confirmar sua “vocação e eleição” (2Pe 1.10), pois não foram chamados nem eleitos; mesmo que se batizem, nunca poderão conhecer completamente aquele que chamou os eleitos para a sua própria glória e virtude (2Pe 1.3). Ao contrário dos verdadeiros crentes, a entrada para o reino eterno do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo não será amplamente suprida aos meros professos, visto que foi no próprio Cristo que eles tropeçaram (cf. 2Pe 1.10-11). E ainda que os tais se esperneiem naquele Dia, dizendo “Senhor, mas eu fui batizado nas águas”, eles terão que ouvir a dura realidade da boca do próprio Cristo que eles rejeitaram: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticam a iniquidade” (Mt 7.22-23).

[Conclusão]

A profissão de fé torna-se algo puramente vazio se não for acompanhada de genuíno e constante arrependimento. Os falsos crentes, ainda que professem publicamente a sua fé por meio do batismo, suas próprias condutas hão de denunciar que a fé que eles possuem é morta. Nesse caso, é mais do que apropriado dizer que os tais não passam de “sepulcros caiados” (Mt 23.27,28).

Soli Deo Gloria!

Publicado originalmente no blog 5 Calvinistas.


[1] Embora a partícula εν também possa ser traduzida como “pela”, penso que a tradução mais coerente seja mesmo “na justiça”, visto que Pedro está mais preocupado em expor o objeto da nossa fé do que em expor o meio pelo qual viemos a crer. Fé “em que”, e não “por meio de que”.

[2] KISTEMAKER, Simon. Epístolas de Pedro e de Judas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p.340-341. Obrigado, Helder, por ter se dado ao trabalho de digitar o comentário do Kistemaker sobre essa passagem e mandar pra mim por e-mail.

[3] Embora devamos admitir que a linguagem que o salmista usa no Sl 24.4 é uma metáfora tirada dos rituais levíticos (cf. Lv 11-15).

[4] O método hermenêutico que geralmente uso nesses casos é o da eliminação das proposições falsas (semelhante àquele que usamos para responder às questões objetivas nas provas de vestibular, concursos e etc.). Eliminando-se as proposições improváveis (falsas), sobrará apenas uma única e provável (verdadeira) resposta.

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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Sobre os supostos textos “arminianos” da Bíblia[2] – Análise de 2 Pedro 3.9

Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento (Almeida Revista e Atualizada).

[Introdução]

O texto supracitado é largamente usado pelos arminianos como uma prova irrefutável de que Cristo morreu por toda a humanidade. O raciocínio é mais ou menos o que segue: “Como é que Jesus veio morrer por alguns, se o próprio Deus deseja que todos se salvem”? É interessante o fato de que até mesmo um grande teólogo reformado como John Murray endosse exatamente o parecer arminiano. Veja o que ele diz sobre esse mesmo texto:

Deus não deseja que nenhum homem pereça. Seu desejo, antes, é que todos entrem para a vida eterna chegando ao arrependimento. A linguagem nessa parte do versículo é tão absoluta que é altamente anormal encarar Pedro como querendo dizer meramente que Deus não deseja que nenhum crente pereça… A linguagem das cláusulas, então, mais do que naturalmente refere-se à humanidade como um todo… Ela não tem em vista os homens como eleitos ou como réprobos[1].

Sinceramente, não sei porque cargas d’água um teólogo do calibre do John Murray, autor de obras tão consagradas no meio reformado, como o Comentário de Romanos e Redenção – Consumada e Aplicada, tenha errado tão crassamente como ele o fez aqui. Mas isso não me interessa. O que interessa, de fato, é analisar se tanto ele quanto os arminianos estão certos em suas interpretações.

[Análise]

Se o contexto da referida passagem for cuidadosamente observado, a interpretação arminiana não tem como se manter de pé. Para não sermos desnecessariamente longos em nossa exposição, vamos nos deter apenas do versículo 8 em diante, em busca de algumas provas contra a interpretação que os arminianos conferem ao Texto Sagrado.

A primeira prova contra a interpretação arminiana é que Pedro está se dirigindo aos crentes (os “amados”). Senão, vejamos:

    • 2Pe 2.8: “Há, todavia, amados, uma coisa que não deveis esquecer: que para o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia”.

Haveria uma chance de escape para a interpretação arminiana se Pedro tivesse como objetivo, aqui, corrigir os falsos mestres, dirigindo-se especialmente aos tais. Mas não é isso que a carta como um todo revela. Pedro está escrevendo à igreja, preocupando-se em trazer à lembrança desta as “palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos apóstolos” (2Pe 3.2 – cf. 1.12-14). Seu objetivo é alertá-la contra o ensino dos falsos mestres, que negavam a promessa de Cristo quanto ao seu retorno triunfal (também conhecido como “parousia”). Compreender isto, que é aos crentes que Pedro se dirige, é fundamental para a intepretação da passagem em questão.

Isto posto, chegamos à nossa segunda prova de que a interpretação arminiana está equivocada. Pedro começa o versículo 9 dizendo que “alguns” julgavam que a parousia era uma farsa, haja vista que a promessa de Cristo quanto a ela estava “demorando” para ser cumprida. Pedro, então, explica aos crentes o porquê de Cristo ainda não ter voltado: “ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. Não há dificuldade alguma no texto. Ele é mais do que claro. As palavras que sublinhei só podem se referir aos crentes. Deus é longânimo somente para aqueles a quem Ele não fará perecer. E quem é o único povo que não perecerá? Resposta: a Igreja. Essa verdade é reforçada pelo uso que Pedro faz da palavra grega boulomenos (do verbo boulomai – lit. “ter vontade”, “intentar”) para o “querer” de Deus (“não querendo que nenhum pereça”). Geralmente, essa palavra é usada para designar uma “determinação incontestável” e deliberada da parte de Deus[2].

Mas, suponhamos que os arminianos estejam certos, e que o “todos” a quem Pedro se refere seja mesmo a humanidade inteira. A que conclusões chegaríamos?

  1. Se o retorno tão esperado de Cristo depende mesmo do arrependimento de toda a humanidade, então os falsos mestres contemporâneos de Pedro estão cobertos de razão, pois Jesus, nesse caso, jamais voltará;
  2. Se não é bem esse o caso, então os propósitos de Deus foram frustrados (contrariando Jó 42.2), visto que nem toda a humanidade se arrependerá;
  3. Se também não é esse o caso, então das duas uma: ou os hereges estão certos (o que faria de Jesus um mentiroso, de fato), ou Deus falhou na sua empreitada redentiva. ABRE PARÊNTESE. Este terceiro ponto era para soar redundante, mesmo. FECHA PARÊNTESE.

Como podemos perceber, as próprias premissas do pensamento arminiano para o caso que estamos tratando, se levadas às suas últimas implicações, excluem-se mutuamente. E as conclusões que delas podemos tirar são absurdas!

Somos levados, então, à terceira prova do erro arminiano. Se o versículo 9 ainda está obscuro no que diz respeito a que tipo de pessoa é alvo da longanimidade de Deus para fins salvíficos, então vejamos o que o próprio Pedro diz no versículo 15:

    • 2Pe 3.15: “E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada”.

Mais uma vez, haveria outra chance remota de escape para os arminianos se esse versículo não estivesse onde está. Mas ele está aí – resoluto, firme, inconteste! E ele está dizendo que nossa salvação só é possível porque Deus é longânimo. E para agravar ainda mais a situação (dos arminianos, é lógico), Pedro resolve fazer referências a Paulo. O texto paulino mais provável que Pedro tem em mente é o de Romanos 2.4. Vejamos o que diz:

    • Rm 2.4: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento”?

Vejam só! Paulo está dizendo que somos conduzidos ao arrependimento por causa da bondade de Deus. Isso é maravilhoso! E Pedro não está fazendo aqui uma citação despropositada, como se ele estivesse apenas querendo conferir autoridade ao seu parecer apelando para Paulo. Nada disso. Pedro está simplesmente corroborando uma verdade já anunciada anteriormente pelo apóstolo aos gentios, a saber, que somente chegarão ao arrependimento aqueles a quem Deus dispensar a sua longanimidade.

Pode ser que aqui os arminianos se levantem e vociferem: “se for assim, então há controvérsias”! Eles poderão alegar um outro possível texto paulino, na mesma carta, que também fala da longanimidade de Deus. Vejamos qual:

    • Rm 9.22: “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição”.

Bem. Não consigo imaginar qual seria exatamente o argumento dos arminianos. Se eles apelarem para o fato de que Deus suporta com muita longanimidade “os vasos de ira”, ou seja, os incrédulos, então eles também terão que admitir que os tais foram “preparados para a perdição” (réprobos), enquanto que outros foram preparados para a glória (os eleitos – Rm 9.23). Sinceramente, se eu fosse arminiano, jamais apelaria para um texto desses. A não ser que eu estivesse disposto a admitir que realmente “o Senhor fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso, para o dia da calamindade” (Pv 16.4). Mas isso seria demais para quem não aceita a absoluta e irrestrita Soberania de Deus. Tudo isso mostra que não há escapatória para quem deseja contestar a Verdade. Ela “encurrala”, mesmo.

[Conclusão]

Diante de tudo o que vimos, não me resta outra alternativa, senão a de concluir “doxologicamente” (valeu por esse insight, Roberto Vargas!):

“Obrigado, Senhor, pela tua imensa paciência dispensada a nós, pobres e miseráveis pecadores. Sem ela não nos restaria tempo para nos arrependermos de ter ofendido o teu Santo Nome. Dessa forma, podemos dizer, com absoluta certeza, que fomos salvos pela Tua longanimidade. Aleluia”!

Soli Deo Gloria!

Publicado originalmente no blog 5 Calvinistas.


[1] The Free Offer of the Gospel, Murray and Stonehouse ,no city, no publisher, no date, 26, 27. Citado no site Monergismo (clique aqui).

[2] Verbete “vontade”, do Novo Dicionário Internacional de Teologia do NT (Ed. Vida Nova, pág. 2677).

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terça-feira, 24 de novembro de 2009

Sons da graça comum[1]: Muse, de Erik Mongrain

Sou meio suspeito para falar de música. Principalmente, quando o assunto é violão. E ainda mais quando se trata de música instrumental. Preciso dizer algo mais quanto ao porquê de postagens como esta que ora começo.

Não me importa quem toca, se o cara é ímpio ou se ele é crente. Se a música é boa, entendo isso como uma manifestação da graça comum de Deus derramada a todos os homens indistintamente. Particularmente, sou um grande admirador da boa música como expressão de arte. E penso que isso, de certa forma, externa um pouco da Imago Dei que o homem carrega. Por este motivo é que eu apresento aos leitores do Optica Reformata alguns “Sons da graça comun”. Minha ideia é apresentar apenas música instrumental.

Sem mais delongas, gostaria de apresentar a música Muse, de um dos meus violonistas preferidos da atualidade, o canadense Erik Mongrain. Quem não gosta de violão, creio que passará a gostar. E quem pensa que toca (como é o meu caso), repensará se o faz de fato. Apreciemos, pois, essa verdadeira pérola do violão instrumental contemporâneo.

Espero que tenham curtido.

Soli Deo Gloria!

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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Sobre os supostos textos “arminianos” da Bíblia[1] – Análise de 2 Pedro 2.1

“Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição” (Almeida Revista e Atualizada – ARA).

O primeiro texto supostamente “arminiano” que escolhi para início de conversa é o de 2 Pedro 2.1. O que faz este texto “parecer” arminiano é o uso que Pedro faz da palavra “resgatou” durante a sua descrição dos falsos profetas. Não é ilusão de ótica, meus caros. Realmente a Palavra está dizendo que pessoas renegaram a Deus após terem sido por Ele resgatadas. Será que este versículo compromete, de fato, a doutrina da perseverança dos santos, como querem os arminianos? Pedro não poderia ter escolhido uma palavra menos “comprometedora”? Por que ele fez isso? Nosso objetivo, aqui, é tentar responder a essas questões.

[Estudo da palavra “resgatou”]

A palavra que Pedro usou para “resgatou” é a palavra grega agorasanta (lit. “que comprou”), uma variação do verbo agorazō, que significa, literalmente, “comprar”. Esse verbo, bem como suas variantes, ocorre trinta vezes em todo o Novo Testamento, mas apenas em cinco dos casos ele se refere à “compra” de cristãos (vd. 1Co 6.20, 7.23; Ap 5.9, 14.3,4). No restante das ocorrências ele assume seu sentido comercial usual (e.g. Mt 13.44; Mc 6.36; Lc 14.18; Jo 4.8; 1Co 7.30; Ap 13.17). Alguém poderia objetar dizendo que a ocorrência no texto petrino que estamos considerando também se refere à “compra” de cristãos, o que aumentaria para seis o número de ocorrências da referida palavra com este sentido redentivo. Minha resposta a tal objeção é que Pedro, diferente dos outros autores das passagens citadas, não está se referindo ao rebanho que foi comprado pelo sangue de Jesus, a Igreja. Senão, vejamos:

    • 1Co 6.20: “Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo’’;
    • 1Co 7.23: “Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens”;
    • Ap 5.9: “e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação”;
    • Ap 14.3,4: “3 Entoavam novo cântico diante do trono, diante dos quatro seres viventes e dos anciãos. E ninguém pôde aprender o cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados da terra. 4 São estes os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. São os que foram redimidos [egorasthesan] dentre os homens, primícias para Deus e para o Cordeiro”.

No caso dos textos em 1 Coríntios, o que Paulo tem em vista é a nova situação dos crentes como escravos de Deus, já que foram comprados por alto preço por Ele. O argumento paulino (vd. contexto) é que os cristãos tem que viver à altura do nome que agora carregam. Já em Apocalipse, o que João tem em vista é a “compra” dos salvos, e tão somente destes, pelo sangue do Cordeiro (5.9). João ainda diz que somente os que foram “comprados da terra” é que podem entoar o novo cântico diante do trono (os 144 mil representam a totalidade dos eleitos). E ele finaliza dizendo que apenas “os que foram redimidos dentre os homens” é que foram capazes de manter sua fidelidade espiritual ao Deus que lhes comprou.

Definitivamente, parece não ter sido esta a sorte dos falsos mestres a quem Pedro se refere. Eles não viviam à altura do nome que arrogavam para si, visto que eram extremamente libertinos, avarentos, mentirosos, atrevidos, arrogantes, adúlteros e jactanciosos (vd. 2.2, 3, 10, 14 e 18). Sendo assim, eles jamais poderão cantar o “novo cântico” diante do trono (Ap 14.3), uma vez que não foram capazes de manter sua fidelidade doutrinária, espiritual e moral. Isso nos mostra que a incapacidade para tal deveu-se ao fato de os tais não estarem dentre aqueles homens que foram redimidos, a saber, os verdadeiros seguidores do Cordeiro (Ap 14.4). ABRE PARÊNTESE. Sei que os arminianos, aqui, vão discordar da Expiação Limitada. Nesse caso, paciência. FECHA PARÊNTESE. Sendo assim, então por que será que Pedro usou a palavra “resgatou”?

Bem. Mesmo com a correlação do texto petrino com os supracitados, esta pergunta ainda continua difícil de ser respondida. Porém, se atentarmos para o fato de que Pedro está fazendo um paralelo dos falsos mestres do NT com os falsos profetas do AT (ver Dt 13. Cf. 1Rs 22; Jr 23; Ez 13; Zc 13.4), poderemos extrair o sentido que ele quis emprestar à palavra em questão. É somente dessa forma que poderemos justificar o uso que ele faz do referido termo.

Jesus comparou o reino dos céus a uma rede que, “lançada no mar, recolhe peixes de toda espécie” (Mt 13.47). Essa verdade pode muito bem ser aplicada ao povo de Israel. Pensemos na saída do povo do Egito nesses termos, por um momento (ou seria “forçar demais” o texto?). Quando por ocasião do êxodo do Egito a “rede” foi lançada, não devemos pensar que apenas “peixes bons” foram fisgados, e sim que também havia “peixes ruins” no meio. Ou seja, nem todo mundo que saiu de lá era crente de fato! A própria história nos mostra que, não obstante o fato de serem hebreus, nem todos faziam parte, de fato, do povo da Aliança. É Paulo mesmo quem fala que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm 9.6). Do Egito saíram homens corajosos como Josué e Calebe, mas também ímpios revoltosos como Corá, que foi tragado vivo, com todos os seus, pela terra que Deus fez abrir debaixo dos seus pés (Nm 16). Quando o povo foi murmurar contra Moisés e Arão dizendo que estes haviam matado o “povo do Senhor” (Nm 16.41), o próprio Deus se encarregou de exterminar, mediante terrível praga, o restante da massa incrédula, totalizando “catorze mil e setecentos, fora os que morreram por causa de Corá” (Nm 14.49). Ora, Corá e os rebeldes foram “resgatados” do Egito também, mas eles eram “povo de Deus”?

Penso que aqui criamos uma ponte para a nossa compreensão do motivo pelo qual Pedro resolveu usar a palavra “resgatou”. Pedro não está falando de um resgate efetivo, e sim, de um resgate potencial. Ou seja, não é a “graça especial” (aquela que é derramada apenas sobre os eleitos) que ele tem em mente, e sim, a “graça comum” (aquela que Deus derrama sobre toda a humanidade)[1]. Para esclarecer melhor este ponto, voltemos por um instante à parábola de Jesus em Mateus 13.47-50. Como é que Jesus a conclui? Ele diz que os pescadores, ao chegarem à praia, assentam-se para escolher os peixes bons para o cesto, ao passo que os ruins são deitados fora. “Assim será na consumação do século: sairão os anjos, e separarão os maus dos justos, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (vs. 49,50). Isto significa que os incrédulos (os “peixes ruins”) poderão “pegar carona” no barco somente até à hora em que ele ainda está navegando. Mas ai deles quando o barco chegar à praia e os pescadores começarem a ver quem é quem!

[Mais dois argumentos]

Embora eu acredite que a parábola e o restante da explanação por si só já tenham sido suficientes para lançar luz sobre a questão em geral, particularmente sobre o uso que Pedro fez da palavra “resgatou”, gostaria de usar apenas mais dois fatos para reforçar minha argumentação.

1) A certeza que Pedro tem quanto ao juízo que Deus derramará sobre os falsos mestres indica que eles jamais estiveram nos planos salvíficos de Deus. Pedro diz que a condenação dos falsos mestres não é uma “ideia recente” na mente de Deus, e sim que “para eles o juízo lavrado há longo tempo não tarda, e sua destruição não dorme” (2.3). Pedro, na realidade, já havia declarado algo semelhante na sua primeira carta, ao dizer que os construtores da auto-justificação vieram à existência justamente para tropeçarem na “Pedra de tropeço”, que é Cristo (1Pe 2.8). ABRE PARÊNTESE. É por essas e outras que sou supralapsariano. FECHA PARÊNTESE. Pedro, então, usa alguns exemplos da história do Antigo Testamento para reiterar ainda mais o seu parecer sobre o destino desses ímpios. Ele faz citações da queda dos anjos (v. 4); do dilúvio (v. 5); e da destruição de Sodoma e Gomorra(v. 8). E aqui temos algo revelador. Se o salvo pode mesmo perder a salvação, como os arminianos afirmam, então o versículo 9 não deveria estar nesse contexto, pois ele diz que “o Senhor sabe livrar da provação os piedosos e reservar, sob castigo, os injustos para o Dia do Juízo”. O exemplo que Pedro usa para realçar tal verdade é o livramento que o Senhor deu ao justo Ló (v. 7,8). Posteriormente Pedro ainda fará uma referência a Balaão, o profeta que se extraviou do reto caminho, amando o “prêmio da injustiça” (v. 15,16). Para pessoas desse tipo, o apóstolo diz que o que Deus reserva é apenas juízo e trevas medonhas (cf. v. 4, 9 e 17).

2) Alguns adjetivos que Pedro usa indicam que esses tais que se diziam cristãos, na realidade, nunca o foram. Se os leitores observarem todo o contexto da passagem, logo perceberão que Pedro não fica fazendo rodeios nem se utiliza de eufemismos para dar aos hereges a classificação que lhes cabe. Sem melindres diplomáticos, Pedro os tacha diretamente de “falsos”. Ele não diz, por exemplo, que os tais eram “falsos profetas que foram verdadeiros um dia”. Essa verdade ganha realce empolgante no final do versículo 22, onde Pedro compara os falsos crentes com porcos: “com eles aconteceu o que diz certo adágio verdadeiro [...]: a porca voltou a revolver-se no lamaçal”. Mais uma vez, Pedro não diz, nem ao menos sugere, que eles já foram ovelhas um dia, mas que, agora, sofreram uma “mutação” e se transformaram em porcos. Não. Pedro, seguindo o seu raciocínio anterior de que tais pessoas são “como animais irracionais, que seguem a natureza” (v. 12), arremata falando que o porco, por alguns instantes de aparente bem-estar higiênico, voltou ao seu habitat natural - a lama! É justamente essa verdade que o apóstolo João endossa quando diz que os falsos mestres “saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos" (1 Jo 2.19).

[Conclusão]

Infelizmente, no momento não tenho como me antecipar a absolutamente todas as objeções que os arminianos porventura venham a levantar ao que foi acima explanado. Isso tornaria a exegese forçada e o trabalho cansativo. É por este motivo que o melhor a fazer é esperar até à próxima postagem da série. Até lá!

Soli Deo Gloria!

Leonardo Galdino.

Publicado originalmente no blog 5 Calvinistas.


[1] Aqui Pedro não está se referindo à “compra” realizada por Jesus na cruz, visto que o termo no original grego que ele utiliza para “Soberano Senhor” é a palavra despotes. Sugere-se que, aqui, ele esteja se referindo a Deus o Pai, uma vez que quando ele quer se referir ao senhorio de Jesus a palavra que ele geralmente usa é kyrios (cf. v. 20). Isso não significa que o “resgate” do Pai é menos efetivo do que o do Filho, e sim que o que Pedro tem em vista ao fazer uso da palavra “resgatou” é a graça comum de Deus sobre os homens.

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domingo, 15 de novembro de 2009

Sobre os supostos textos "arminianos" da Bíblia [0] - Questões Introdutórias

Antes de adentrar nas “questões introdutórias” propriamente ditas, gostaria de esclarecer algumas coisas sobre os motivos que me levaram (na realidade, que estão me levando) a escrever essa série. Tenho visto que nos últimos anos a internet, especialmente a blogosfera, tem se tornado o espaço preferido para as mais efusivas discussões (talvez porque dispense o “constrangimento” de uma acareação). “A arena está montada e só se digladia quem tem pulso!” – é mais ou menos este o discurso que paira implícito (e explícito, por vezes) em alguns ciberespaços. No entanto, percebo que pouco do que se diz tem sido realmente proveitoso ou produtivo. Na maioria das vezes esse pretenso “pulso” não tem se mostrado como firmeza na Verdade por Deus revelada, e sim, como firmeza no próprio “pulso” carnal – nas especulações vãs e irracionais da mente humana decaída, de modo que o foco na edificação mútua e no compartilhamento da “fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3) tem sido paulatinamente perdido. Contudo, isso não quer dizer que um “caloroso” debate seja ruim, e vou tentar explicar o porquê.

[Adentrando nas “questões introdutórias” – uma defesa da relevância da discussão]

Algum tempo atrás me envolvi num debate sobre a doutrina da perseverança dos santos, no blog de um famoso e influente pastor pentecostal (preciso citar quem foi?), que respondia com um “sim” à seguinte pergunta: “É possível perder a salvação, se ela nos foi concedida pela graça de Deus”? Na oportunidade, fiz alguns comentários (uns publicados, outros não, sei lá por que) pertinentes ao assunto, no intuito de apresentar as razões bíblicas pelas quais o parecer do referido pastor era inconsistente. O pastor em questão também apresentou mais alguns textos bíblicos para dar suporte ao seu ponto de vista, e o resultado foi que a discussão ficou “inacabada”, pois resolvi sair dela, o que foi interpretado por alguns seguidores do blogueiro anfitrião como um “pedido de arrego” de minha parte. Recentemente meus amigos blogueiros Clóvis e Helder Nozima (do Cinco Solas e do Reforma e Carisma, respectivamente) se envolveram num debate intenso com o Prof. Leandro Quadros, do programa de televisão e site adventista Na Mira da Verdade. Na ocasião, o pivô da discussão foi a doutrina da predestinação, na qual o referido professor mirou, mas errou (acho que por problemas de vista), embora tenha apresentado uma “enorme” lista de 48 textos (na realidade foram 56) que, segundo ele, “mostram ser possível o predestinado se perder”, o que “leva qualquer leitor a concluir que o calvinismo carece – e MUITO – de base bíblica”.

Diante de exemplos como os supracitados, paira no ar a seguinte pergunta: já que cada um usa a Bíblia para apoiar seu próprio ponto de vista, e como muitas das vezes o uso que elas fazem do texto sagrado parece ser coerente, quando é, então, que uma discussão sobre certos assuntos é relevante? Não seria essa uma “guerrinha de egos” somente para definir quem está com a razão?

Devo admitir que, de fato, na maioria dos casos as discussões tem se transformado mesmo em disputas puramente egocêntricas, onde a humildade é esquecida em prol do afã de se ganhar a disputa (inclusive este que vos escreve já agiu assim, por algumas vezes). Nesse caso, o debate, ainda que seja sobre um tema de extrema relevância, tornar-se-á não apenas inútil, mas, também, nocivo. Porém, creio que há uma “possibilidade de redenção” para a necessidade de se debater. Eu diria que isso se dá apenas quando ambas as partes se dispõem a se submeterem à Verdade. E aqui é bom que se diga que a Verdade é uma só. ABRE PARÊNTESE. Sei que essa minha declaração pode soar deveras soberba e exclusivista (além de “suspeita”), mas, sinceramente, não estou nem um pouco preocupado com isso, contanto que minhas assertivas estejam respaldadas pela Verdade contida na Palavra. FECHA PARÊNTESE.

[Chegando mais perto…]

Muitos são os textos que os arminianos (ainda que alguns deles não gostem de ser chamados assim, pois preferem ser chamados de “bíblicos”, ou “equilibrados”) usam para tentar legitimar suas doutrinas e pareceres sobre certos assuntos em que divergem da teologia reformada. Essa divergência geralmente dá-se em virtude da soteriologia calvinista, resumida em cinco pontos pelos seus próprios oponentes arminianos (para um breve resumo histórico, clique aqui). O famoso acróstico TULIP os resume: Total depravação, Uma eleição incondicional (Predestinação), Limitada expiação, Irresistível graça e Perseverança dos santos. Ainda que nós, reformados, saibamos perfeitamente que o calvinismo é muito mais do que soteriologia, devemos admitir que a doutrina da salvação é realmente o ponto nevrálgico dessa disputa.

Quanto a este último particular, há quem diga que uma leitura ipso facto da Bíblia favorece mesmo a algumas das interpretações que os arminianos advogam como verdadeiras. Talvez seja esse um dos principais motivos pelos quais o arminianismo seja mais palatável à maioria dos cristãos de hoje. Ora, se Paulo mesmo fala que Deus “deseja que todos os homens cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2.4), e que Jesus “a si mesmo se deu em resgate por todos” (1Tm 2.6), os arminianos não estão porventura corretos quando afirmam que a morte de Jesus foi para salvar a toda a humanidade, e não apenas aos eleitos? Não é de fato esta a primeira impressão que se tem quando se depara com um texto tão “claro” como esse?

Bem, a discussão relativa ao referido texto propriamente dito, bem como tudo o que envolve sua exegese, ficará para as próximas postagens (que não será necessariamente a próxima). Nesse momento basta dizer apenas que o grande problema da visão arminiana é, primariamente, um problema de referência. Sem medo de parecer arrogante ou coisa que o valha, afirmo, sem meias palavras, que o sistema arminiano (ou qualquer outro que procure limitar Deus em Seus atributos) é puramente humanista em seu âmago, visto que o homem, e não Deus, é sempre tomado com o ponto de partida nas discussões. E, ainda que vários textos da Bíblia sejam usados para apoiar seus argumentos, os mesmos mostrar-se-ão completamente falsos se o referencial certo (ou seja, o próprio Deus) não for devidamente considerado. Este ponto é de crucial importância para qualquer tipo de abordagem que se queira fazer envolvendo as verdades eternas.

[Um testemunho]

A esta altura considero ser oportuno comentar algo. Penso que boa parte dos reformados, na qual me incluo, já se sentiu profundamente inquieta diante de textos como os supracitados quando iniciaram sua jornada pelas Antigas Doutrinas da Graça (das quais o calvinismo é apenas um “apelido”, digamos). Como nem sempre assimilamos tudo de uma vez só, creio que muitos de nós já questionamos até mesmo a validade da perspectiva que resolvemos abraçar. Eu, particularmente, não abracei todos os cinco pontos logo de imediato, mas a posteriori (a “conta-gotas”, digamos). Resisti por um tempo à doutrina da predestinação, que é tida (erroneamente) como o coração do calvinismo. Mas depois de muito meditar na Palavra percebi que, se Deus não predestinasse, ninguém poderia ser chamado eficazmente pelo Espírito, nem justificado dos seus pecados, o que significa que ninguém jamais seria glorificado naquele glorioso Dia (cf. o silogismo paulino em Rm 8.30). Mas não foi o medo de ser tachado como um “calvinista manco” (de quatro pés, ou melhor, pontos) ou coisa do tipo que me fez acatar a doutrina da predestinação. Eu o fiz simplesmente por perceber uma unidade intrínseca entre cada ponto, bem como a interdependência deles entre si. E foi pensando nessas questões que me decidi a escrever sobre o que fazer com aqueles textos supostamente “arminianos” da Bíblia.

[Considerações finais]

Em princípio, meu objetivo é analisar apenas os textos que os arminianos usam como “provas irrefutáveis da falácia calvinista”, mas não prometo que será sempre assim. Paralelo aos textos que os arminianos pervertem, pode ser que eu coloque outros textos, apelando para o princípio hermenêutico de que a Bíblia se auto-interpreta. Na medida do possível também pretendo expor algumas das falácias hermenêuticas e exegéticas mais comuns em nosso meio (acadêmico, clerical ou leigo), mas somente o farei quando for pertinente. Espero em Deus que essa série possa se tornar útil para todos aqueles que, como eu, desejam “manejar bem” a Palavra da Verdade (2Tm 2.15), e que, nisso tudo, somente Deus seja glorificado.

Soli Deo Gloria!

Leonardo Galdino.

Publicado originalmente no blog 5 Calvinistas.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Cristo: Ponto de convergência, ponto de divergência

Convergência: ato ou efeito de convergir; disposição de dois ou mais elementos lineares que se dirigem para ou se encontram no mesmo ponto; tendência para aproximação ou união em torno de um assunto ou de um fim comum; confluência, concorrência.

Divergência: afastamento progressivo; diferença de opinião; desentendimento, discordância; qualidade daquilo que diverge, que tem limites infinitos.

Fonte: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.


Para muitas pessoas ao redor do mundo Jesus foi uma figura extremamente controversa. Muitos o enxergam como um revolucionário, ao passo que outros, como um pacifista, um apaziguador. Para uns, aquele que agrega; para outros, aquele que segrega. Mas o fato é que as Escrituras o apresentam das duas formas, tanto como um ponto de convergência quanto como um ponto de divergência. Jesus, real e finalmente, trouxe a lume o que o pregador de Eclesiastes quis dizer com “tempo de derribar e tempo de edificar; tempo de rasgar e tempo de coser” (Ec 3. 3,7). Esse é um dos paradoxos mais notáveis da fé cristã.

De fato, a Bíblia nos apresenta Jesus como sendo o ponto de convergência da fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos (cf. Jd 3). Essa fé reúne todos os eleitos, e apenas estes, em um único rebanho, sob a regência de um único Pastor (cf. Jo 10). Em torno do Cristo Ressurreto, o povo redimido se reúne para uma adoração solene, onde tudo é mono. O louvor é uníssono. A fé ensinada, entoada e proclamada é uma só. E o Objeto dessa mesma fé e de todo o nosso louvor também é um só. Como bem diz um famoso hino cristão, “um só rebanho, um só Pastor; uma só fé em um só Salvador”. Essa reunião em torno do Supremo Pastor só foi (e continua sendo) possível graças à promessa que o Deus dos Antigos, “que não pode mentir” (Tt 1.2), fez a Abraão: “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3). Essa promessa apontava claramente para uma grande convergência de povos das mais variadas culturas, que se reuniriam em torno dAquele que foi “designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1.4). O próprio Evangelho, “o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras” (Rm 1.2), teve seu cumprimento cabal na pessoa e obra de Jesus, o centro convergente de toda a Escritura vetero e neotestamentária (Rm 1.3. cf. Hb 1.1-2). Isso significa que o centro Bíblia não é aquela “folhinha branca” entre Malaquias e Mateus, muito menos a fé de Abraão ou a mansidão de Moisés, menos ainda Zaqueu ou Lázaro (para bom entendedor…) – o centro das Escrituras é o Descendente de Davi, Jesus, o Cristo (Rm 1.3)! Ele, sim, foi quem comprou para Deus “os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação” (Ap 5.9) com seu precioso sangue vertido na cruz do calvário, fazendo com que a salvação se estendesse para fora dos portões de Israel, a todos aqueles que creem. Como bem diz outro hino cristão famoso, “de todas as tribos, povos e raças, muitos virão Te louvar”. Além desse tipo de convergência “soteriológica”, digamos, segundo o apóstolo Paulo haverá também uma espécie de “convergência cósmica”, onde “todas as coisas, tanto as do céu como as da terra” encontrar-se-ão em Cristo “na dispensação da plenitude dos tempos” (Ef 1.10). Calvino entende essa passagem como sendo a restauração escatológica de todas as coisas em Cristo (cf. Rm 8.18-22), uma vez que a Queda simplesmente “despedaçou” a humanidade decaída juntamente com toda a criação. Ainda segundo o reformador, é somente em Cristo que encontramos conserto para os cacos. Tanto em relação à humanidade quanto ao restante da criação, Cristo se apresenta como o elemento convergente. De fato, é como se ele fosse uma espécie de redemoinho, que traz para dentro de si tudo o que estiver em sua órbita.

Mas não nos enganemos quanto a essa “órbita”, pois nela não se encontra o mundo inteiro (Universalismo, Expiação Geral), e sim, apenas o povo escolhido de Deus (cf. Mt 1.21). Não nos enganemos também pensando que Cristo é sempre esse redemoinho convergente que traz tudo o que está em sua órbita para dentro de si mesmo. Ele também é um vulcão, que repele e destroi todo elemento desconhecido que o circula. Essa realidade pode se tornar dura demais para quem pensa que Jesus é apenas um “ponto de convergência”, um “carinha legal”, mas o seu próprio ministério mostra como ele divergia duramente dos inimigos da cruz. Isso acontecia porque a Bíblia apresenta-nos alguém que seria uma grande “pedra de tropeço” em Sião (Is 28.16), e tanto Paulo (em Rm 9.32,33) quanto Pedro (em 1Pe 2.4-8) identificam essa pedra justamente com Cristo. Para Paulo, Jesus é a “pedra de tropeço” (ponto de divergência) para todo aquele que pensa que poderá ser salvo pelas obras, quer seja judeu, quer seja gentio. O apóstolo argumenta no contexto da aludida passagem que a fé salvífica pertence somente àqueles que foram eleitos. Decerto, os judeus se consideravam o povo da Aliança e, por conseguinte, herdeiros automáticos da salvação. Mas Paulo derruba essa empáfia dizendo que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos” (Rm 9.6,7). Para o apóstolo somente “os filhos da promessa” é quem são os verdadeiros herdeiros (Rm 9.8). Os judeus incrédulos pensavam que estavam caminhando bem, até se depararem com a Pedra que estava no meio dos seus caminhos. Seguindo o mesmo raciocínio, mas com uma ênfase diferente, Pedro argumenta que nossos sacrifícios são agradáveis a Deus única e exclusivamente por intermédio de Cristo, “a pedra que vive, rejeitada, sim, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa” (1Pe 2.4,5). Alinhando seu pensamento ao de Paulo, Pedro ainda diz que Cristo é a “pedra angular” que os construtores da auto-justificação rejeitaram e na qual tropeçaram, de acordo com o fim para o qual vieram a este mundo (1Pe 2.7,8). Esse tropeço deliberado simplesmente fere aquilo que é considerado o coração do evangelho, a doutrina da justificação pela fé somente, que, segundo Lutero, é o “artigo de fé mediante o qual a Igreja permanece de pé ou cai”. Certamente, todo aquele que tropeça nessa verdade, pensando que poderá se auto-justificar diante de Deus mediante obras, cairá terrível e irremediavelmente no Juízo Final.

O brado de Solus Christus dos reformadores não foi sem propósito. Ele indica que somente Cristo é digno de louvor; que somente Cristo é o Mediador; que somente Cristo é o Salvador; que somente Cristo é o cerne da História da Redenção; e que, por isso, somente Cristo é a chave hermenêutica para se compreender as Escrituras. A Igreja Romana viola essa verdade ao apresentar outros “centros” (pontos de convergência) contíguos a Cristo. As grandes religiões do mundo erram por não reconhecerem que há um só Deus e Senhor de tudo e de todos. Os falsos evangelhos espalhados por aí também traem as Escrituras quando apresentam outras prioridades (prosperidades) que não seja Cristo. Todas as outras doutrinas e filosofias humanas andam bem, até encontrarem Cristo, a “pedra de tropeço”, pelo caminho. Qualquer tentativa de deslocar a Cristo do centro que só a Ele pertence constitiu-se em total divergência da Verdade. Como disse Calvino, “desviar-se de Cristo, ainda que seja apenas por um passo, significa privar-se alguém do evangelho”. Para quem é alvo da convergência de Cristo, ou seja, quem está na sua órbita de salvação (os eleitos), novos céus e nova terra o espera. Mas para quem é alvo da sua divergência (os “intrusos” na órbita – o joio), apenas parafraseio o puritano Richard Sibbes: “de que adiantaria você ter todas as criaturas a seu favor se o próprio Cristo* é o seu divergente**”?

Soli Deo Gloria!
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*No original, “Deus”; ** “inimigo”.
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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A verdade sobre a mentira (parte 2) - Gnosticismo Antigo e Contemporâneo (1)

O Gnosticismo Antigo


“Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?” (João, o apóstolo – 1Jo 2.22).



“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, as próprias heresias são equipadas pela filosofia”[1]. Foi dessa forma que Tertuliano (160-240 d.C.) ligou a filosofia de seu tempo ao seu “filhote religioso” mais ilustre, o Gnosticismo, um amalgamado de filosofia pagã, esoterismo mitológico e elementos da doutrina apostólica que veio para tentar apagar o evangelho legado por Cristo e seus apóstolos da memória da Igreja. Dado o extremo grau de periculosidade que esse movimento representou para a manutenção da ortodoxia nas fileiras do cristianismo, não seria nenhum exagero afirmar que, de todas as heresias (“mentiras teológicas”) que a igreja primitiva teve que enfrentar, o Gnosticismo foi, sem sombra de dúvidas, a pior.

Definir o que foi o Gnosticismo não é uma tarefa fácil, mas vamos tentar, em princípio, nos deter a algumas de suas designações mais genéricas. Gnosticismo é um termo que deriva da palavra grega gnosis, que significa, literalmente, “conhecimento”. Para os gnósticos, a verdade é secreta, e somente é revelada a algumas pessoas detentoras de um “conhecimento” especial (daí o porquê do termo). A salvação da alma consiste exatamente em descobrir qual é essa “verdade”, voltando-se o indivíduo para dentro de si mesmo em busca de suas origens. Essa característica aproxima o gnosticismo do neoplatonismo, na sua busca de tentar restabelecer a união com a divindade a partir de uma interiorização contemplativa. Os gnósticos elaboraram uma teogonia[2] extremamente complexa a fim de explicar a origem do universo, incorrendo numa cosmovisão puramente dualista (Bem x Mal). Segundo eles, o Supremo e Verdadeiro Deus transcendente e último (não cognoscível), que habita acima dos universos criados, fez emanar de si mesmo todas as substâncias visíveis e invisíveis existentes no mundo. Dessas emanações vieram os éons, que eram seres divinos intermediários entre o Supremo Deus e nós. Um desses seres eônicos, chamado Sofia, teria feito emanar de si mesmo o deus (também chamado de “Demiurgo”) que criou o mundo material e psíquico, à imagem da sua própria imperfeição. Este deus (que é identificado com o Deus do Antigo Testamento), então, passou a pensar que era o próprio Deus Supremo, incorrendo em orgulho. É dessa forma que o gnosticismo explica as mazelas do mundo, bem como toda a corrupção deste, concluindo, com isso, que toda matéria é inerentemente má. É no meio de toda essa confusão que os gnósticos unem elementos da filosofia pagã e do misticismo esotérico das religiões de mistério para fazerem uma verdadeira “salada” mística e religiosa.

Ao contrário do que muita gente pensa, essa filosofia não nasceu dentro do cristianismo. Suas origens remontam às antigas tradições persas e babilônicas antes mesmo de Cristo ter nascido. Mas o grande problema para nós foi quando, tendo surgido o cristianismo, alguns cristãos presumiram que poderiam aliar as crenças gnósticas às doutrinas apostólicas, numa “tentativa de explicar Cristo em termos da filosofia pagã ou da ‘teosofia’”[3]. Isso resultou num verdadeiro desastre para a Igreja, uma mancha terrível na história do povo de Deus[4]. As ideias gnósticas passaram a fazer parte da dieta doutrinária de muitos grupos ditos cristãos, que já não sabiam mais delinear marcos entre a ortodoxia e a heresia. A habilidade dos mestres gnósticos em sintetizar noções gnósticas com conceitos cristãos, pegando emprestado destes algumas de suas terminologias, fez com que o próprio evangelho fosse redefinido, ainda que este se mostrasse totalmente pagão em eu âmago. Muitos passaram a ensinar que Jesus era um “éon” que se desviou astuciosamente do mundo das trevas para trazer esse “conhecimento” secreto (a gnosis), proporcionando aos espíritos da luz, que habitam nos seres humanos, a plena liberdade do cativeiro do mundo terreno e material. A doutrina apostólica, então, passou a ser mais um elemento a compor a “salada” gnóstica, que agora passou a autodenominar-se de “cristã”, o que fez com que o nome do Gnosticismo se associasse ao do Cristianismo até aos dias atuais (contudo, é bom que fique bastante claro que não havia um “cristianismo gnóstico”, como muitos estudiosos de história antiga o querem, e sim, um “gnosticismo cristão”).

Entretanto, essas simples definições e conceitos não são capazes de abranger todas as vertentes, modalidades e nuances próprias do gnosticismo que se instalou no seio da Igreja. O Gnosticismo, como um sistema de crenças, não era homogêneo. Havia uma ampla diversidade dentro do próprio movimento, já que “o pensamento gnóstico oferecia possibilidades para os ‘inventores’ de religiões, nas quais cada falso mestre podia inventar sua própria seita”[5]. Irineu (c. 180), bispo de Lyon, na Gália Romana, fala em pelo menos quatro tipos de gnosticismo existentes em seus dias: 1) Gnosticismo de tipo sírio (Saturnino); 2) Gnosticismo de tipo egípcio (Basílides, Valentino); Gnosticismo de tipo judaizante (Cerinto e os ebionitas); e 4) Gnosticismo de tipo pôntico (Márcion)[6]. Cada uma dessas variantes tinha suas próprias particularidades (sobre as quais não pretendemos entrar em detalhes agora). Uma coisa interessante é que, quando as premissas gnósticas conflitavam grosseiramente com as doutrinas apostólicas, os gnósticos “inventavam” suas próprias versões do evangelho. E o pior de tudo é que eles “assinavam” o documento como se o mesmo fosse de autoria dos apóstolos. Até a metade do século vinte, esses “evangelhos” somente eram conhecidos por nós através das obras polêmicas de seus críticos mais vorazes, como Irineu (130-200) em Contra as Heresias e Tertuliano (160-225) em Contra Márcion. Foi quando, em 1945, uma “biblioteca gnóstica” foi encontrada em Nag Hammadi, no Egito, contendo alguns manuscritos dos evangelhos gnósticos, como por exemplo, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, o Evangelho dos Egípcios e o Evangelho da Verdade. Esses “evangelhos” não visavam apenas a “‘preencher’ supostas lacunas nas informações dos canônicos (como, por exemplo, sobre a infância de Jesus), mas [...] apresentar versões diferentes dos fatos e pessoas retratados nesses evangelhos”[7]. Um bom exemplo desses “evangelhos” que procuravam redefinir o papel de alguns dos personagens tidos como os “vilões” da história é o famoso Evangelho de Judas (descoberto na caverna de El Mynia, no deserto do Egito, em 1978), no qual Judas, apresentado nos Evangelhos canônicos como um traidor, é redefinido como o único que realmente compreendeu a mensagem “secreta” que o Mestre veio trazer. Desse modo, Judas é transformado no “herói” da história, demolindo toda a sua tradicional fama de vilão. Embora sua descoberta tenha se dado tão recentemente, Irineu já fazia referências a ele na sua obra Contra as Heresias (Livro I, 31.1 – lá aparecem também uns tais de “cainitas”, uma seita que inocentava a Caim). E não apenas Irineu, mas todos os tratados polemistas asseveram que o gnosticismo foi um movimento marginal ao cristianismo, e não integrante deste; um intruso, e não um convidado; um “corpo estranho”, e não um órgão; uma gangrena que precisava ser removida às pressas, numa intervenção cirúrgica habilidosa.

Mas não devemos pensar que foi apenas no período pós-apostólico que essa heresia surgiu, não. Há claros indícios, a partir do próprio Novo Testamento, que a igreja neotestamentária enfrentou em suas fileiras uma forma incipiente de gnosticismo. Tertuliano afirma que Paulo tinha em mente a filosofia gnóstica quando advertiu aos cristãos colossenses para que estes tomassem cuidado com certas “filosofias e vãs sutilezas, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo” (Cl 2.8)[8]. Sugere-se que os hereges de Colossos estavam unindo elementos judaicos, crenças populares da Frigia e “germens” de gnosticismo ao evangelho, promovendo um verdadeiro sincretismo religioso, o que lhes rendeu a pecha de “heresia colossense” – um sistema de crenças absolutamente estranho. É possível também que sejam essas as “fábulas” e “genealogias sem fim” que Paulo fala aos jovens pastores Timóteo (1Tm 1.4) e Tito (Tt 1.14), sobre as quais eles deveriam tomar o máximo de cuidado. Ainda que não nos seja possível fazer uma absoluta associação desses erros com o gnosticismo, devemos pelo menos reconhecer certos pontos de semelhança entre eles.

Contudo, as principais evidências da infiltração gnóstica na igreja neotestamentária encontram-se nos escritos do apóstolo João, especialmente nas suas cartas. Nelas, o apóstolo nos dá algumas informações do tipo de gnosticismo que a igreja de então estava enfrentando. A principal acusação de João contra os ensinos heréticos era que “muitos enganadores tem saído ao mundo, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (2Jo 7 – ênfase minha). Na realidade, essa negação da encarnação de Jesus é uma doutrina gnóstica que ficou conhecida depois como Docetismo (do grego dokeo – lit. “parecer”, “aparência”). Essa variante gnóstica ensinava que todas as manifestações da natureza humana de Jesus eram apenas uma aparência, uma ilusão de ótica (uma espécie de holograma). Sendo assim, seguindo a premissa gnóstica básica de que a matéria é essencialmente má, os falsos mestres, além de negarem a humanidade de Jesus (encarnação), negavam também a própria crucificação e ressurreição deste, atribuindo tudo a uma mera ilusão, já que Deus não poderia ter assumido a forma humana, em Jesus. João também nos informa que os hereges, de igual modo, negavam a divindade de Jesus. Essa outra variante gnóstica pode ser atribuída a um homem chamado Cerinto, que residia em Éfeso e foi, inclusive, contemporâneo (e possível adversário) do próprio João. De acordo com Irineu, um polemista do segundo século, Cerinto “representava Jesus como não tendo nascido de uma virgem, mas como sendo filho de José e Maria segundo o curso comum da geração humana, enquanto que era, não obstante, mais justo prudente e sábio do que os outros homens. Além disso, depois do seu batismo, Cristo desceu sobre ele, em forma de pomba, vindo do Supremo Regente, e que depois proclamou o desconhecido Pai, e realizou milagres. Mas por fim Cristo separou-se de Jesus, e então Jesus sofreu e ressuscitou, enquanto Cristo permaneceu impassível [isto é, “não sujeito a dor ou ferimento”], visto que era um ser espiritual”[9]. A ideia de Cerinto sugere que Jesus não era verdadeiramente Deus, mas que foi habitado pelo Cristo, uma emanação do éon divino que desceu sobre o homem Jesus. Esse Cristo veio sobre Jesus por ocasião do seu batismo, mas o deixou por ocasião da sua crucificação. Isso faz com que a divindade de Jesus seja algo imposto, vindo de fora, e não inerente a ele. Esse pensamento de Cerinto foi aderido pelos Ebionitas[10], uma seita gnóstica de tipo judaizante do fim do primeiro século. Para João, contudo, tanto a negação da encarnação quanto da divindade de Jesus constitui-se em verdadeira mentira teológica. Uma das definições que o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa dá para mentira é “aquilo [...] que se aproxima da verdade ou é real apenas na aparência” (ênfase minha). João concordaria plenamente com essa definição. Se Cristo era apenas uma “aparência”, como queriam os docetistas, então o próprio Deus era um mentiroso, e Jesus, uma mentira; se Jesus não tinha um corpo físico, então ele não foi para a cruz para morrer pelos nossos pecados, muito menos ressuscitou para a nossa justificação (cf. Rm 4.25). Por este motivo, para o apóstolo João qualquer coisa que se aproxime da verdade, mas que não seja exatamente a Verdade, não passa de pura mentira; qualquer um que negue que Jesus é o Cristo (plenamente humano e plenamente divino) é um mentiroso (1Jo 2.22).

As fortes ênfases joaninas à retidão do viver cristão em oposição às dissoluções carnais sugerem que esses falsos mestres também ensinavam que o cristão poderia pecar à vontade, pois não fazia diferença alguma, visto que a carne má. O apóstolo combate essa ideia com veemência, dizendo que “todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus” (1Jo 3.9 – ênfase minha). Outra característica desses falsos mestres era a sua flagrante falta de amor para com os outros irmãos, uma vez que o acesso às verdades espirituais (a “gnose”) pertencia somente aos “iluminados”. Isto posto, duas categorias de crentes foram criadas: a dos “iluminados” e a dos “não-iluminados”. João combate essa falácia ao dizer que “se [...] andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7 – ênfase minha). O apóstolo é mais enfático ainda quando diz que “se alguém disser: Amo a Deus, e odiar seu irmão, é mentiroso, pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4.20 – ênfase minha). João é tão vigoroso em seu combate ao erro que ele adverte a um grupo de cristãos a não receber em suas casas qualquer um que não traz a sã doutrina, muito menos dar-lhes as boas-vindas, “porquanto aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das duas obras más” (2Jo 10,11). Quanto a isso, Irineu, em sua conhecida obra Contras as Heresias, no livro III, nos traz um episódio interessante envolvendo João e Cerinto, contado por Policarpo, bispo de Esmirna e discípulo de João: “E há quem o tenham ouvido dizer que João, o discípulo do Senhor, indo banhar-se em Éfeso e tendo visto Cerinto nos banhos, saltou para fora das termas sem ter-se banhado e disse: ‘Fujamos, não ocorra que também as termas venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade’”[11]. O zelo que João nutria pela verdade legou para os cristãos subseqüentes a munição necessária para que o erro religioso fosse combatido.

De fato, a heresia gnóstica teve que mover um verdadeiro arsenal de defensores da ortodoxia: os polemistas[12]. Inácio de Antioquia, Irineu, Justino, o mártir, Tertuliano e Hipólito foram alguns deles. Não era fácil combater os mestres gnósticos, pois, além de eles serem ótimos debatedores, o próprio gnosticismo, como já vimos, era bastante diversificado. Alguém comparou o gnosticismo à Hidra, um monstro (serpente) mitológico que tinha várias cabeças. Quando se cortava uma, nascia outra em seu lugar. Assim era o gnosticismo dos primeiros séculos. Por essa razão, essa heresia, enquanto sistema, não era fácil de ser refutada, uma vez que suas premissas possibilitavam aos inventores de religião criar o seu próprio “gnosticismo” com os elementos que preferissem. Dentre os principais mestres gnósticos estavam Saturnino (c.120); Basílides (c. 130); Valentino (c. 140), seu sucessor; Carpócrates; Cerinto; e Cerdon, dentre outros[13]. Mas nenhum deles, talvez, tenha chegado aos pés de um homem natural do Ponto, chamado Márcion (c. 160), sucessor de Cerdon. Dentre os mestres gnósticos ele foi, sem sombra de dúvidas, um dos maiores inimigos do cristianismo. Alguns chegam até a afirmar que, se havia alguém capaz de aniquilar o cristianismo nos primeiros séculos, esse alguém era Márcion. Irineu dedica boa parte da sua obra Contra as Heresias no combate a esse falso mestre, acusando-o de, por exemplo, mutilar o Evangelho de Lucas, “rejeitando narrativas referentes ao nascimento do Senhor”, uma vez que era docetista. Márcion também, segundo Irineu, mutilou as cartas de Paulo, “eliminando delas tudo que declara ser o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo o Deus que fez o mundo, bem como o ensino dos profetas anunciando o advento de nosso Senhor”. Ele estava criando o seu próprio cânon, o que forçou a Igreja a delimitar e reconhecer quais eram os livros verdadeiramente inspirados. Além disso, ele “persuadiu seus discípulos de que merecia mais crédito do que os apóstolos que legaram o Evangelho”[14]. Inácio de Antioquia também parece combater os ensinos de Márcion quando adverte os cristãos de sua época: “Torna-te surdo, quando te falam de um Jesus Cristo fora daquele que foi da família de Davi, filho de Maria, nasceu autenticamente, comeu e bebeu, padeceu verdadeiramente sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado e morreu verdadeiramente... De que me valeria estar em cadeias, se Cristo sofreu somente na aparência, como certos pretendem? Esses, sim, não passam de meras aparências”[15]. A pergunta feita por Inácio ecoa o mesmo argumento que Paulo havia exposto aos coríntios: “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a nossa fé” (1Co 15.14). Outro polemista importante, Tertuliano, afirma que Márcion herdou o “bom deus” sossegado dos estóicos, uma vez que Márcion cria que o deus do Antigo Testamento é mau, cruel e imperfeito. Por este motivo ele se negava a identificar o deus veterotestamentário com o Deus do Novo Testamento que, segundo ele, era o verdadeiro Pai de Jesus. Tertuliano ainda afirma que “quando Márcion afirma que a alma perece, obedece a Epicuro; quando nega a ressurreição da carne, segue o parecer de uma dentre todas as filosofias; quando confunde matéria e Deus, repete a lição de Zenon; quando alude a um deus de fogo, torna-se aluno de Heráclito”[16]. Toda essa série de coisas fez com que Márcion se tornasse a persona non grata mais eminente dentre os hereges de sua época. Isso é atestado por uma ocasião em que ele, ao topar com Policarpo, perguntou-lhe: “Reconheces quem eu sou?”, ao que Policarpo respondeu: “Reconheço. És o primogênito de Satanás”[17]. Decerto, havia muitos outros hereges gnósticos altamente perigosos, mas entrar em detalhes sobre a vida de cada um nos exigiria uma investigação mais intensa (e extensa).

A influência gnóstica foi realmente uma praga dentro da Igreja, pois sua filosofia serviu de base para todas as outras heresias que surgiriam logo em seguida, principalmente àquelas que envolviam a Pessoa de Cristo e a Trindade[18]. Mas isso foi, de certa forma, bom, porque foi ali que a Igreja começou a cerrar fileiras e a fazer algumas definições teológicas importantes, como aconteceu nos concílios de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedônia (451), por exemplo. As heresias, num certo sentido, “ajudaram” a Igreja na formulação dos credos mais importantes do cristianismo, como o famoso Credo Apostólico. Como bom calvinista, penso que tudo foi providencial. É claro que não podemos cair no erro de “louvar” os hereges por isso, mas também devemos reconhecer o que de positivo tudo isso trouxe à fé cristã de um modo geral.

Como deve ter ficado mais do que evidente em nossa breve pesquisa, o gnosticismo é totalmente incompatível com a doutrina dos apóstolos e, por extensão, com todo o restante das Escrituras. As tentativas de se conciliar as duas partes não passam de teimosia incrédula. Os mestres gnósticos não estavam atacando apenas pontos “periféricos” do evangelho, e sim, o próprio cerne dele: a Cruz de Cristo. Sem a cruz não há Cristo; sem a cruz não há ressurreição; sem a cruz não há justificação; sem a cruz não há redenção; em suma, sem a cruz não há evangelho. Os gnósticos, a exemplo de muitas pessoas hoje, queriam chegar a Deus sem Cristo; queriam a salvação sem a cruz. Mas o esforço desses hereges não foi suficiente para aniquilar a cruz, pois o próprio Cristo havia prometido que “as portas do inferno” não prevaleceriam contra a sua Igreja (Mt 16.18). A ortodoxia, a despeito dos fortes ataques que sofreu, se manteve de pé. Entretanto, os rastros do antigo gnosticismo perduraram, chegando até aos dias de hoje por diversos meios e de diversas formas e nomes, continuando a incomodar a Igreja militante de Cristo aqui na terra. A mentira ainda ronda por aí. Mas esse é um assunto para uma próxima conversa.

Continua na próxima postagem da série “A verdade sobre a mentira”, se Deus permitir.


Soli Deo Gloria!

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[1] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 32).
[2] “Doutrina concernente à origem dos deuses, quase sempre relacionada com a formação do mundo” (verbete Teogonia, do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Larousse – versão eletrônica).
[3] H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. Aste, SP, 1998. Págs. 77.
[4] Uma tradição antiga atribui a Simão, o mago samaritano sobre o qual Lucas relata em Atos 8.9-25, a responsabilidade pela introdução do gnosticismo no cristianismo (cf. Eusébio de Cesaréia. História Eclesiástica. Livro IV, cap. 22.5).
[5] MacArthur, John. Guerra pela verdade. Editora Fiel, 2008. Pág. 121.
[6] Irineu. Adversus Haeresis. Na realidade, Irineu não fala explicitamente em quatro tipos de gnosticismo. Isso foi deduzido por Henry Bettenson, a partir da obra de Irineu Contra as Heresias (H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. Aste, SP, 1998. Pág. 77-80).
[7] Ver Santos, João Alves dos. Cristianismo e Gnosticismo: uma avaliação de sua incompatibilidade ao ensejo da publicação do “Evangelho de Judas”. Revista Fides Reformata XI, nº 1 (2006). Págs. 53, 54.
[8] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 33).
[9] Adversus Haeresis. XXVIII. 1. Citado por John Stott em I, II e III João – introdução e comentário. Edições Vida Nova, 1982. Pág. 41.
[10] Para mais detalhes, ver Eusébio de Cesaréia em História Eclesiástica. Livro II, cap. XXVII.1-6.
[11] História Eclesiástica. Livro IV, cap. 14.6.
[12] “Polemista” difere de “Apologista” pelo fato de que os polemistas defendiam a fé dos ataques internos (dos hereges), ao passo que os apologistas, dos ataques externos (dos pagãos, agnósticos etc.).
[13] Para uma lista mais completa, ver História Eclesiástica. Livro IV.
[14] Irineu. Contra as Heresias. I.XXVII.2-3. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Págs. 80-81).
[15] Inácio. Ad Trall. IX-X. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 77).
[16] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 33).
[17] Idem. Livro IV, cap. 14.7.
[18] Como o Arianismo, o Monarquianismo (Patripassionista e Sabeliano), o Apolinarismo, o Nestorianismo e o Eutiquianismo, por exemplo, além do Montanismo, que Tertuliano veio abraçar depois.

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