Antes de adentrar nas “questões introdutórias” propriamente ditas, gostaria de esclarecer algumas coisas sobre os motivos que me levaram (na realidade, que estão me levando) a escrever essa série. Tenho visto que nos últimos anos a internet, especialmente a blogosfera, tem se tornado o espaço preferido para as mais efusivas discussões (talvez porque dispense o “constrangimento” de uma acareação). “A arena está montada e só se digladia quem tem pulso!” – é mais ou menos este o discurso que paira implícito (e explícito, por vezes) em alguns ciberespaços. No entanto, percebo que pouco do que se diz tem sido realmente proveitoso ou produtivo. Na maioria das vezes esse pretenso “pulso” não tem se mostrado como firmeza na Verdade por Deus revelada, e sim, como firmeza no próprio “pulso” carnal – nas especulações vãs e irracionais da mente humana decaída, de modo que o foco na edificação mútua e no compartilhamento da “fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3) tem sido paulatinamente perdido. Contudo, isso não quer dizer que um “caloroso” debate seja ruim, e vou tentar explicar o porquê.
[Adentrando nas “questões introdutórias” – uma defesa da relevância da discussão]
Algum tempo atrás me envolvi num debate sobre a doutrina da perseverança dos santos, no blog de um famoso e influente pastor pentecostal (preciso citar quem foi?), que respondia com um “sim” à seguinte pergunta: “É possível perder a salvação, se ela nos foi concedida pela graça de Deus”? Na oportunidade, fiz alguns comentários (uns publicados, outros não, sei lá por que) pertinentes ao assunto, no intuito de apresentar as razões bíblicas pelas quais o parecer do referido pastor era inconsistente. O pastor em questão também apresentou mais alguns textos bíblicos para dar suporte ao seu ponto de vista, e o resultado foi que a discussão ficou “inacabada”, pois resolvi sair dela, o que foi interpretado por alguns seguidores do blogueiro anfitrião como um “pedido de arrego” de minha parte. Recentemente meus amigos blogueiros Clóvis e Helder Nozima (do Cinco Solas e do Reforma e Carisma, respectivamente) se envolveram num debate intenso com o Prof. Leandro Quadros, do programa de televisão e site adventista Na Mira da Verdade. Na ocasião, o pivô da discussão foi a doutrina da predestinação, na qual o referido professor mirou, mas errou (acho que por problemas de vista), embora tenha apresentado uma “enorme” lista de 48 textos (na realidade foram 56) que, segundo ele, “mostram ser possível o predestinado se perder”, o que “leva qualquer leitor a concluir que o calvinismo carece – e MUITO – de base bíblica”.
Diante de exemplos como os supracitados, paira no ar a seguinte pergunta: já que cada um usa a Bíblia para apoiar seu próprio ponto de vista, e como muitas das vezes o uso que elas fazem do texto sagrado parece ser coerente, quando é, então, que uma discussão sobre certos assuntos é relevante? Não seria essa uma “guerrinha de egos” somente para definir quem está com a razão?
Devo admitir que, de fato, na maioria dos casos as discussões tem se transformado mesmo em disputas puramente egocêntricas, onde a humildade é esquecida em prol do afã de se ganhar a disputa (inclusive este que vos escreve já agiu assim, por algumas vezes). Nesse caso, o debate, ainda que seja sobre um tema de extrema relevância, tornar-se-á não apenas inútil, mas, também, nocivo. Porém, creio que há uma “possibilidade de redenção” para a necessidade de se debater. Eu diria que isso se dá apenas quando ambas as partes se dispõem a se submeterem à Verdade. E aqui é bom que se diga que a Verdade é uma só. ABRE PARÊNTESE. Sei que essa minha declaração pode soar deveras soberba e exclusivista (além de “suspeita”), mas, sinceramente, não estou nem um pouco preocupado com isso, contanto que minhas assertivas estejam respaldadas pela Verdade contida na Palavra. FECHA PARÊNTESE.
[Chegando mais perto…]
Muitos são os textos que os arminianos (ainda que alguns deles não gostem de ser chamados assim, pois preferem ser chamados de “bíblicos”, ou “equilibrados”) usam para tentar legitimar suas doutrinas e pareceres sobre certos assuntos em que divergem da teologia reformada. Essa divergência geralmente dá-se em virtude da soteriologia calvinista, resumida em cinco pontos pelos seus próprios oponentes arminianos (para um breve resumo histórico, clique aqui). O famoso acróstico TULIP os resume: Total depravação, Uma eleição incondicional (Predestinação), Limitada expiação, Irresistível graça e Perseverança dos santos. Ainda que nós, reformados, saibamos perfeitamente que o calvinismo é muito mais do que soteriologia, devemos admitir que a doutrina da salvação é realmente o ponto nevrálgico dessa disputa.
Quanto a este último particular, há quem diga que uma leitura ipso facto da Bíblia favorece mesmo a algumas das interpretações que os arminianos advogam como verdadeiras. Talvez seja esse um dos principais motivos pelos quais o arminianismo seja mais palatável à maioria dos cristãos de hoje. Ora, se Paulo mesmo fala que Deus “deseja que todos os homens cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2.4), e que Jesus “a si mesmo se deu em resgate por todos” (1Tm 2.6), os arminianos não estão porventura corretos quando afirmam que a morte de Jesus foi para salvar a toda a humanidade, e não apenas aos eleitos? Não é de fato esta a primeira impressão que se tem quando se depara com um texto tão “claro” como esse?
Bem, a discussão relativa ao referido texto propriamente dito, bem como tudo o que envolve sua exegese, ficará para as próximas postagens (que não será necessariamente a próxima). Nesse momento basta dizer apenas que o grande problema da visão arminiana é, primariamente, um problema de referência. Sem medo de parecer arrogante ou coisa que o valha, afirmo, sem meias palavras, que o sistema arminiano (ou qualquer outro que procure limitar Deus em Seus atributos) é puramente humanista em seu âmago, visto que o homem, e não Deus, é sempre tomado com o ponto de partida nas discussões. E, ainda que vários textos da Bíblia sejam usados para apoiar seus argumentos, os mesmos mostrar-se-ão completamente falsos se o referencial certo (ou seja, o próprio Deus) não for devidamente considerado. Este ponto é de crucial importância para qualquer tipo de abordagem que se queira fazer envolvendo as verdades eternas.
[Um testemunho]
A esta altura considero ser oportuno comentar algo. Penso que boa parte dos reformados, na qual me incluo, já se sentiu profundamente inquieta diante de textos como os supracitados quando iniciaram sua jornada pelas Antigas Doutrinas da Graça (das quais o calvinismo é apenas um “apelido”, digamos). Como nem sempre assimilamos tudo de uma vez só, creio que muitos de nós já questionamos até mesmo a validade da perspectiva que resolvemos abraçar. Eu, particularmente, não abracei todos os cinco pontos logo de imediato, mas a posteriori (a “conta-gotas”, digamos). Resisti por um tempo à doutrina da predestinação, que é tida (erroneamente) como o coração do calvinismo. Mas depois de muito meditar na Palavra percebi que, se Deus não predestinasse, ninguém poderia ser chamado eficazmente pelo Espírito, nem justificado dos seus pecados, o que significa que ninguém jamais seria glorificado naquele glorioso Dia (cf. o silogismo paulino em Rm 8.30). Mas não foi o medo de ser tachado como um “calvinista manco” (de quatro pés, ou melhor, pontos) ou coisa do tipo que me fez acatar a doutrina da predestinação. Eu o fiz simplesmente por perceber uma unidade intrínseca entre cada ponto, bem como a interdependência deles entre si. E foi pensando nessas questões que me decidi a escrever sobre o que fazer com aqueles textos supostamente “arminianos” da Bíblia.
[Considerações finais]
Em princípio, meu objetivo é analisar apenas os textos que os arminianos usam como “provas irrefutáveis da falácia calvinista”, mas não prometo que será sempre assim. Paralelo aos textos que os arminianos pervertem, pode ser que eu coloque outros textos, apelando para o princípio hermenêutico de que a Bíblia se auto-interpreta. Na medida do possível também pretendo expor algumas das falácias hermenêuticas e exegéticas mais comuns em nosso meio (acadêmico, clerical ou leigo), mas somente o farei quando for pertinente. Espero em Deus que essa série possa se tornar útil para todos aqueles que, como eu, desejam “manejar bem” a Palavra da Verdade (2Tm 2.15), e que, nisso tudo, somente Deus seja glorificado.
Soli Deo Gloria!
Leonardo Galdino.
Publicado originalmente no blog 5 Calvinistas.
2 comentários:
Leonardo,
Acho que vc fez como Jesus, rs, deixou o melhor pro fim. Os melhores argumentos são os internos da própria carta. Se eu fosse você, teria começado com a evidência interna (mais forte e esclarecedora) e fechava explicando a externa (mais fraca e, até certo ponto, rebatível...pq eu poderia questionar se, de fato, a parábola cabe como texto correlato).
A mim me pareceu convincente, aprendi lendo o post.
Abs!
Helder,
Comentou na postagem errada, hein? rsrs!
A postagem a que você se refere é esta.
Mas obrigado pelas observações. Realmente, eu não atentei para o fato de que eu estava trilhando o caminho inverso da exegese, ou seja, em vez de partir da evidência interna para a externa, fiz o contrário. Mas acredito que isso não tenha comprometido a exposição. Da próxima vez ficarei mais atento. :)
Quanto à parábola, não coloquei ela como um texto correlato, e sim como um texto que poderia lançar uma luz maior na questão, apelando para aquele princípio hermenêutico que diz que devemos interpretar um texto "obscuro" (no modo de dizer, é claro) à luz de um texto mais claro.
Abraços!
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