
[Escrevi esse texto a irmãos de um grupo de louvor de uma igreja histórica que queriam incorporar a referida música aos cânticos congregacionais de sua igreja local. Acredito que, por isso, os leitores reformados hão de compreender minha parcimônia.]
Se tentaram matar os teus sonhos
Sufocando o teu coração
Se lançaram você numa cova
E, ferido, perdeu a visão
Não desista, não pare de crer
Os sonhos de Deus jamais vão morrer
Não desista, não pare de lutar
Não pare de adorar
Levanta teus olhos e vê:
Deus está restaurando os teus sonhos
E a tua visão
Recebe a cura
Recebe a unção
Unção de ousadia
Unção de conquista
Unção de multiplicação
A música fala sobre uma pessoa que está sendo ameaçada de ver os seus sonhos mortos e o coração sufocado; que foi jogada ferida e sem visão dentro de uma cova. A autora, então, encoraja tal pessoa a não desistir; a não deixar de crer; não parar de lutar, de adorar; a levantar os olhos e ver que Deus está restaurando os seus sonhos e a sua visão, pois “os sonhos de Deus jamais vão morrer”. A seguir ela declara que a pessoa receba a cura e a unção de ousadia, de conquista e de multiplicação.
A começar pelo título a música já comete um erro teológico gravíssimo: o de afirmar que Deus sonha. Essa afirmação (“os sonhos de Deus jamais vão morrer”) não encontra sustentação bíblica nem teológica. Quando afirmo que Deus “sonha” eu estou tirando-O da sua posição de soberania e reduzindo-O à categoria de ser submisso. Deus não sonha, Ele age (“E disse Deus: ‘Haja luz’. E houve luz” – Gn 1.3); Deus não sonha, Ele determina (“Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nenhum deles havia ainda” – Sl 139.16). Portanto, devemos ter muito cuidado em atribuir metáforas a Deus que não se harmonizam com os seus atributos.
Esse erro que acabamos de detectar puxa um outro, que é o de tornar Deus passivo na história e o homem senhor dela. Note que, na música, o sujeito não é Deus, e sim, o homem. Ou seja, para que as coisas aconteçam é preciso que você, e não Deus, tome a iniciativa. Esse pensamento, que na realidade é uma doutrina, é conhecido como “Confissão Positiva”, que prega que você deve ter um pensamento positivo para ser vitorioso. A autora apela para os sentidos do ouvinte, e não para a razão, ao usar palavras como “sonho”, “coração”, “visão”, “cura” e “unção” para indicar que atitude se deve tomar diante das dificuldades. Além disso, parece haver aqui uma pitada de “batalha espiritual” (“não desista, não pare de lutar”), que é um tema bem presente nos grupos denominados neopentecostais.
O refrão é o expoente máximo de toda a teologia contida no restante da música, pois nele estão os seus elementos essenciais. “Recebe a cura/ recebe a unção/ unção de ousadia/ unção de conquista/ unção de multiplicação”: aqui estão algumas das palavras-chave do movimento conhecido como G-12 (Grupo dos 12, em referência aos doze apóstolos), do qual a autora é adepta (assim como Diante do Trono, David Quinlan e outros). Receber a cura, aqui, significa ter a “visão dos 12”, frase bastante usada por esse grupo; receber a unção pode significar, dentre outras coisas, receber o título de apóstolo, como o fazem muitos dos líderes do G-12, para não dizer todos, ou mesmo uma capacitação especial; unção de ousadia significa não medir esforços para combater os principados e potestades, fazendo com que o evangelho seja pregado, não importa de que forma; unção de conquista significa, por exemplo, declarar que “o Brasil é do Senhor Jesus”, conquistando as regiões celestes que estão dominadas pelas hostes malignas, por meio de “Marcha pra Jesus” e coisas do gênero; unção de multiplicação significa igreja em células, método de crescimento das igrejas neopentecostais que adotam a filosofia do G-12 (uma célula contém doze pessoas; cada célula tem um líder; doze células são lideradas por um pastor-supervisor, e assim sucessivamente).
Para concluir gostaria de dizer que o desejo de encorajar a um irmão que está passando por dificuldades, sejam elas materiais ou espirituais, é absolutamente legítimo, e a música tem um papel muito importante nisso. Mas quando ela ultrapassa certos limites impostos pela própria Palavra de Deus e presume ser usada nos cânticos congregacionais é necessário que se analise se realmente ela se encaixa nos padrões confessionais da igreja, desde que os mesmos sejam bíblicos.
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