sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A verdade sobre a mentira (parte 1) – “A mentira sobre a Verdade”

Tertuliano estava coberto de razão quando disse que “o demônio tem lutado contra a verdade de muitas maneiras, inclusive defendendo-a para melhor destruí-la” [1]. Na ocasião, ele estava em defesa da ortodoxia em meio a uma controvérsia cristológica, em meados do século III, onde muitos inimigos da cruz lançavam mão da própria Verdade para negar tanto a plena divindade quanto a plena humanidade de Cristo. Não era uma discussão sobre a forma de batismo ou governo da igreja; sobre usos e costumes ou a guarda de dias sagrados – era o próprio cerne do Evangelho que estava em jogo. Os falsos mestres estavam contando mentiras sobre a Verdade, levando muitas vidas à completa ruína eterna.

Na realidade, a assertiva de Tertuliano remonta aos primórdios da humanidade, ao Éden. Ali, vemos entrar em ação o especialista par excellence na arte de perverter a Verdade. O homem vivia em comunhão com a Verdade (Deus), até o dia em que a Mentira (Satanás) desviou-lhe do caminho, cegando-lhe o entendimento. A Serpente, após ter questionado a Verdade da Palavra de Deus, torceu-a por completo, ao dizer à mulher: “é certo que não morrerás” (Gn 3.1-4). E, depois de questionar e torcer a verdade, a Serpente inventa uma versão “alternativa” dela: “Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5 – itálico meu). Esse engodo maligno resultou na Queda da raça humana, trazendo-lhe conseqüências terríveis. Ainda no livro de Gênesis, temos uma pequena mostra de como isso foi trágico. O primeiro assassinato da história humana foi mediado pela mentira. Caim chamou seu irmão Abel para ir ao campo com o único propósito de matá-lo (Gn 4.8). Abraão, o “pai da fé”, utilizou-se da mentira para se safar da morte, quando esteve no Egito, causando maldição àquela terra (Gn 12.10-20). Os irmãos de José, depois de terem-no vendido, molharam sua túnica com sangue de bode, para que seu pai, Jacó, pensasse que José havia sido comido por feras selvagens (Gn 37.29-35). A mulher do faraó egípcio Potifar, ao ser rejeitada por José, quando o tentava, disse a seu marido que foi José quem tentou agarrá-la, causando a prisão deste (Gn 39.7-20). A tragédia nesses exemplos está justamente no fato de que a mentira angariou credibilidade em detrimento da verdade.

Nos evangelhos, notamos como Jesus lidou com essa questão. Durante seu ministério aqui na terra, ele se deparou com alguns judeus que tentavam torcer a verdade a seu favor, dizendo que tinham por pai a Abraão e, por conseguinte, a Deus (Jo 8.39-41). Jesus foi inexoravelmente incisivo com eles, dizendo-lhes que, na realidade, eles eram filhos do diabo, o “pai da mentira” (Jo 8.44). Jesus não se utilizou de eufemismos para amenizar a real condição daqueles que vivem subvertendo a verdade da Palavra de Deus. Quando Jesus estava para ser julgado, “os principais sacerdotes e todo o Sinédrio” procuravam um testemunho falso (pseudomartys) contra ele, “a fim de o condenarem à morte” (Mt 26.59). Dentre as muitas falsas testemunhas que havia, apenas duas decidiram comparecer ao tribunal. Aliás, segundo o que prescrevia a Lei, seriam necessárias no mínimo duas testemunhas no caso de se requerer a pena de morte a alguém (Nm 35.30; Dt 17.6; 19.15ss). A acusação delas foi a seguinte: “Este [ou seja, Jesus] disse: Posso destruir o santuário de Deus e reedificá-lo em três dias” (Mt 26.61). Ora, se formos ler o que Jesus disse em João 2.19 (“Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”) veremos que a informação daquelas pessoas procedia. Entretanto, o que faz delas falsas e mentirosas é justamente o fato de usarem um aspecto da verdade contra A Verdade! Elas, além de não haverem compreendido o que Jesus quis dizer com “destruir o santuário”, incorreram na violação do nono mandamento: “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êx 20.16), tornando-se, com isso, passíveis da punição divina (se bem que já o eram desde o ventre!). A mentira é inimiga mortal da Cruz.

Para o apóstolo Paulo, tudo o que a mente humana não-regenerada pensa e fala acerca da Verdade é mentira, ainda que o homem conserve lampejos da imago Dei (cf. At 17.28 e todo o contexto). Aliás, para o apóstolo, a raiz da idolatria está justamente no fato de que os homens “mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador” (Rm 1.25). Paulo está escrevendo num contexto em que ele atrela a idolatria humana à sua natureza corrupta. Quando se é corrupto por natureza, a deturpação de toda e qualquer noção de verdade é deliberada. Essa verdade já havia sido ecoada pelo salmista Davi, quando disse que “desviam-se os ímpios desde a sua concepção; nascem e já se desencaminham, proferindo mentiras” (Sl 58.3 – itálico meu). É por esse motivo que Paulo instrui os cristãos de Éfeso a deixarem a mentira (Ef 4.25), revestindo-se do “novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.24 – itálico meu). Paulo ainda nos mostra algumas ramificações da mentira. Ele nos fala em “falsos irmãos” (pseudadelphos – 2Co 11.26; Gl 2.4); “falsos apóstolos” (pseudapostolos – 2Co 11.13); e daqueles que vivem “falando mentiras” (pseudologos – 1Tm 4.2). Esses tais são emissários de Satanás, que se passam por ministros de Cristo e da justiça (2Co 11.13-15). Como é de se notar, o maior perigo não está fora da igreja, e sim, dentro dela, por conta dos lobos disfarçados de ovelhas que se infiltram sorrateiramente nos arraiais. Pedro (2Pe 2.1) e João (1Jo 4.1) também alertam a seus destinatários sobre o perigo desses “falsos profetas” (pseudoprophetes).

A mentira atravessou os séculos e chegou até aqui intacta. A diferença é que ela só mudou de roupa. Se a igreja primitiva, que ainda estava sob a tutela dos apóstolos sofria desse mal, o que dizer da igreja do século XXI, na qual o próprio conceito de uma única Verdade é rechaçado? Qualquer um que hoje defenda a existência de uma verdade única logo é taxado de intolerante, fundamentalista e intransigente. Isso explica a confusão doutrinária que se estabeleceu em nosso meio. Há uma gama enorme de sofismas pós-modernos que são aceitos como verdade em muitos círculos ditos cristãos. E o resultado disso é que a Verdade tem sido deliberadamente subvertida a fim de endossar práticas e doutrinas totalmente antagônicas à Bíblia. A velha Serpente está a todo vapor!

Em dias em que a Verdade tem sido tão subjugada e corrompida, cabe à igreja de Deus, que é a “coluna e baluarte da verdade” (1Tm 3.15), ser a sua guardiã. Deus não outorgou esse poder a nenhuma outra instituição que porventura exista na face da terra, a não ser à sua própria Igreja, que ele comprou com o sangue do Seu Filho. O mundo descrente tem militado de todas as formas contra a Revelação de Deus. As modernas campanhas ateístas são prova disso. Uma verdadeira “guerra” pela Verdade foi instaurada. Urge, pois, que os bons “soldados de Cristo” estejam aptos a combater os inimigos da cruz nessa batalha.

Soli Deo Gloria!


_____________________________________________

[1]H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo. Editora Aste, 2001. Pág. 81


Share |

1 comentários:

Leonardo Bruno Galdino disse...

Caro Pr Macello,

Obrigado por sua visita. Já conheço o seu blog.

Abraços!

Postar um comentário

Muito obrigado por comentar as postagens. Suas opiniões, observações e críticas em muito nos ajuda a buscar a qualidade teológica naquilo que escrevemos. Se for de opinião contrária, não ofenda - exponha sua perspectiva educadamente. Comentários anônimos não assinados ou desrespeitosos não serão publicados. Todo debate será bem-vindo!

Que Deus o abençoe!