terça-feira, 13 de abril de 2010

Calvino e Platão – da relação entre o reformador e o filósofo

[No meu próximo post, esclarecerei o motivo deste de agora.]
Se algum tempo atrás alguém me dissesse que Calvino era simpático a algumas ideias de Platão, eu simplesmente não acreditaria. Isto porque, como a maioria dos evangélicos em nosso país, incluindo alguns reformados, fui orientado (para não dizer educado) a encarar com desprezo certos ensinos oriundos dos pensadores da antiguidade, especialmente dos “subversivos” e “perigosos” filósofos gregos.  E, mesmo crendo que “toda verdade é a verdade de Deus” (Agostinho), ainda que dita por boca de ímpios, sempre que podia eu procurava algum pretexto para condená-los em suas próprias teorias.

O fato, porém, é que Calvino era, sim, simpático a alguns pareceres de Platão. Mas isso equivale a dizer que Calvino era platônico, ou que sua teologia foi erigida sobre os pressupostos da filosofia grega, e não das Escrituras, como querem alguns? Nosso objetivo, aqui, é tentar esclarecer tais questões. Longe de ser exaustiva, minha breve pesquisa resumir-se-á aos escritos do reformador (das Institutas e seus comentários à Sagrada Escritura, basicamente), particularmente aos trechos em que ele faz alusões diretas ao referido filósofo.

Antes de tudo, porém, é interessante sabermos que grau de relevância Calvino dava aos pensadores não cristãos de um modo geral. Sobre a famosa citação que Paulo faz a Epimênides, poeta cretense (Tito 1.12: “Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos”), Calvino comenta que

“Desta passagem podemos inferir que é supersticioso recusar-se a fazer qualquer uso de autores seculares. Porque, visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porque o mesmo procede de Deus”.

(As pastorais. Ed. Fiel, 2009. pág. 318).

Depois de tal parecer, Calvino, de modo instigante, ainda indaga: “Além disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser corretamente usado dessa forma”? Ele não só defende o uso apropriado de autores seculares, mas vai além quando diz que toda verdade deve ser usada para a glória de Deus.

Como é evidente, Calvino via algum valor na filosofia e literatura seculares. Na própria Academia de Genebra, fundada por ele, estudavam-se autores gregos e latinos, dentre os quais encontram-se Homero, Heródoto, Xenofonte, Políbio, Demóstenes, Plutarco, Platão, Cícero, Virgílio e Ovídio, por exemplo. É bom lembrarmos também que Calvino era um humanista, tal qual Erasmo de Roterdã e Lutero, no que se refere a esse retorno aos clássicos gregos e latinos.  Isto explica porque ele era tão versado nesse tipo de literatura, e porque dominava tão bem as línguas consideradas clássicas – o grego e o latim. Aliás, antes mesmo de se converter, seu primeiro trabalho (publicado em 1532) foi um comentário ao livro De Clementia, de Sêneca, filósofo romano contemporâneo de Paulo, onde Calvino, escrevendo em latim, faz cerca de  oitenta citações a autores gregos e latinos[1].

Tendo, pois, averiguado brevemente o que Calvino pensava dos escritores pagãos de um modo geral, voltemo-nos, agora, à sua relação com Platão.

Há algumas coisas com as quais Calvino concorda com Platão. Sobre a imortalidade da alma, por exemplo, o reformador endossa o parecer do filósofo:

“Seria estulto buscar definição de alma da parte dos filósofos, dos quais quase nenhum, excetuando Platão, tem plenamente afirmado ser sua substância imortal. Certamente que também outros socráticos a abordam, todavia em moldes que ninguém claramente ensine de que ele próprio não foi persuadido. Por isso é que Platão tem opinião mais correta, já que contempla a imagem de Deus na alma”.

(Institutas – I.15.6).

Sobre como se deve orar, Calvino também apoia Platão:

“Como visse a imperícia dos homens na apresentação de seus rogos a Deus, os quais, se concedidos, muitas vezes lhes seria prejudicial, Platão declara que a melhor forma de orar é esta, apropriada de um poeta antigo: “Ó Rei Júpiter, confere-nos as coisas melhores, quer as desejemos, quer não; as coisas más, porém, ordena que fiquem longe de nós, ainda quando as peçamos”. E esse homem, na verdade pagão, nisto é sábio, porque sentencia quão perigoso é buscar do Senhor o que nossa cabeça haja ditado; ao mesmo tempo, põe à mostra nossa infelicidade, visto que, na realidade, nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm 8.26]”.

(Institutas – III.20.35).

Em seu comentário à Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, Calvino mais uma vez cita positivamente o filósofo. O assunto agora é sobre o poder da música:

“[…] todos sabemos, pela própria experiência, quão tremendo é o poder da música para agitar as emoções do ser humano; como corretamente ensina Platão, que de uma forma ou outra a música é da maior importância para moldar o caráter moral do Estado”.

(1 Coríntios. Ed. Parakletos, 2003. Pág. 419 – 1Co 14.7).

Contudo, não era sempre de forma simpática que Calvino tratava as ideias de Platão. Em certas ocasiões, Calvino o elogiava somente para, em seguida, apontar-lhe os erros. Por exemplo, referindo-se à miséria a qual todos nós estamos sujeitos, Calvino disse que

“Neste particular, quão prodigamente toda a ordem dos filósofos tem sua fatuidade e inépcia! Ora, para que poupemos aos demais, os quais muito mais absurdamente engendram despautérios, Platão, entre todos o mais religioso e particularmente sóbrio, também ele próprio se perde em seu globo esférico”.

(Institutas – I.5.11).

Em outras ocasiões, Calvino o critica direto, sem rodeios ou elogios, como por exemplo sobre o fato de Platão atribuir a pecaminosidade do homem à sua ignorância:

“Portanto, como foi Platão merecidamente censurado acima, uma vez que imputara à ignorância todos os pecados, assim também se deve repudiar a opinião daqueles que ensinam que em todos os pecados permeiam deliberadamente a maldade e perversidade”.

(Institutas – II.2.25).

Calvino chega até mesmo a falar explicitamente que Platão era, no fim das contas, um mero pagão; perdido; sem Deus.

“Os filósofos disputaram outrora, ansiosamente, sobre o supremo fim das boas coisas, e até entre si contenderam, contudo, ninguém, exceto Platão, reconheceu que o sumo bem do homem é sua união com Deus. De que natureza, porém, fosse esta união, nem sequer tênue gosto pôde ele sentir. Nem é de admirar, uma vez que nada aprendera do sagrado vínculo dessa união”.

(Institutas – III.15.2).

Para Calvino, o fato de Platão ter falado coisas fantásticas e até mesmo doutrinariamente coerentes com o todo da Verdade revelada nas Escrituras não foi suficiente para uni-lo a Deus. Note que Calvino não fala de união com Cristo, e sim, de união com Deus, uma vez que Cristo e Platão não foram contemporâneos. Quando Calvino fala sobre a “natureza” dessa união, penso que ele esteja se referindo a Cristo como nosso mediador, visto que, para o reformador, a união mística de Cristo com a sua Igreja é o fundamento da real e verdadeira comunhão com o Pai. É por isso mesmo que o reformador não alivia: de tudo que escreveu e ensinou, e de todas a suas divagações filosóficas, ainda que louváveis em alguns aspectos, Platão “nada” aprendeu da genuína união com o Criador. Penso que esta declaração de Calvino é suficiente para derrubar de uma vez por todas as acusações de que ele era um admirador cego do filósofo grego.

No fim das contas, verifica-se que o que Calvino entendia ser o supremo e fidedigno depósito da Verdade, bem como o único livro capaz de nos fazer despertar de nossa letargia espiritual, era mesmo a Sagrada Escritura, por mais valor tivessem os escritos dos sábios da antiguidade.

“Admito que a leitura de Demóstenes ou Cícero, de Platão ou Aristóteles, ou de qualquer outro da classe deles, nos atrai maravilhosamente, nos deleita e nos comove ao ponto de nos arrebatar. Mas quando deles nos transferimos para a leitura das Escrituras Sagradas, queiramos ou não, elas nos despertam tão vivamente, penetram de tal modo o nosso coração e de tal maneira se fixam em nossa medula, que toda a força dos retóricos e dos filósofos se evapora, em comparação com a eficácia das Escrituras no sentimento que nos infundem. […] De longe essa qualidade [das Escrituras] supera todas as virtudes da criatividade humana”.

(As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, [I.24] Vol. I. pág. 74).

Penso que nossa breve pesquisa mostrou-se suficiente para constatarmos uma coisa: que o pensamento teológico de Calvino não se estruturou a partir da obra de Platão nem de qualquer outro pensador profano, como pretendem alguns, mas unicamente da Palavra de Deus. Se o que Platão falava se coadunava com as Escrituras, Calvino o apoiava; se não, como vimos, o rejeitava. A Verdade não depende do endosso humano. Como bem atesta o reformador, “a verdade está livre de toda dúvida, visto que, sem nenhuma ajuda, ela é suficiente para manter-se” (Institutas. Ed. Especial. pág. 74). Que Deus nos ajude a pensar o mesmo.

Soli Deo Gloria!


[1] O livro, entretanto, não deu a Calvino o feedback que ele esperava. Usando um linguajar moderno, praticamente não saiu das prateleiras.

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