terça-feira, 27 de outubro de 2015

Educação clássica e cristã

Por Douglas Wilson [1]

A grande dificuldade em prover nossos filhos com uma educação clássica e cristã é semelhante à dificuldade que a água tem em correr ladeira acima. Tenho procurado encorajar os envolvidos nesta tarefa com a observação de que todos estamos tentando oferecer uma educação que nenhum de nós recebeu. Então, a primeira dificuldade em fazer isto é reconhecer a sua impossibilidade. Depois, tudo se torna fácil. 

É claro, o que não é possível com homens é possível com Deus, então precisamos começar esta tão difícil tarefa confiando plenamente nele. A questão realmente importante é se Deus nos chamou para isso. Se chamou, ele dará um jeito. Se não chamou, não o agradaríamos ao tentar, seja fácil ou difícil. 

Jesus nos ensina que os alunos raramente superam seus mestres, então esta questão da qualificação entra logo no início. O que isso significa quando estamos falando sobre educação clássica e cristã é que os pais que empreendem esta forma de educação para os seus filhos, particularmente em um ambiente homeschool, estão determinados a ser alunos bem como mestres. Eles podem estar apenas um pouco à frente de seus alunos, aprendendo coisas a fim de ensiná-los, mas em algum ponto devem adquirir o conteúdo que transmitem. Quando nossa escola decidiu (por princípio) ensinar latim, não tínhamos ninguém que soubesse latim. Mas decidimos mesmo assim. Acabei voltando para a faculdade para tomar algumas aulas, e aprendi o suficiente para estar um salto ou dois à frente dos meus alunos. 

O resumo deste primeiro princípio é que, a fim de prover este tipo de educação para os nossos filhos, devemos estar dispostos a trabalhar duro, e devemos estar dispostos, por Deus, a dividir o Mar Vermelho de tempos em tempos. Este é realmente um esforço de sangue, suor e lágrimas. 

Mas dizer que é uma tentativa árdua não define a natureza da dificuldade. O que é educação clássica e cristã?

Começaremos primeiramente com a segunda parte da questão. Que é educação cristã? Temos que começar excluindo uma definição que, infelizmente, é comum. Educação cristã não deve ser definida como qualquer processo de educação empreendido por cristãos. Porque os cristãos não foram arrebatados assim que convertidos e porque vivemos em um mundo pecador e caído, ainda nos é possível pecar. E podemos pecar em qualquer campo que atuemos - espiritual, física ou mentalmente. Cristãos podem realizar atos não cristãos, e pensar pensamentos não cristãos. Entre esses pensamentos não cristãos podem estar aqueles sobre a natureza e objetivo da educação. Assim como um cristão pode (pecaminosamente) furtar algo em uma loja, ele também pode pensar (pecaminosamente) que história, matemática e biologia são valores neutros. Mas não são.

A educação cristã ocorre quando o processo de educação para os filhos da aliança está sendo conduzido de acordo com os requisitos da Escritura. Em outras palavras, quando os filhos estão sendo ensinados na vontade de Deus, isso é educação cristã.

Um dos requisitos fundamentais da Escritura a este respeito é o de reconhecer o que os teólogos chamam de antítese. No início da história humana, Deus pôs hostilidade entre a semente da mulher e a semente da serpente. Um dos primeiros deveres que temos no ensino dos nossos filhos (a semente da mulher) é o de ensiná-los a tomar cuidado com as cobras. E este é um dever constante, em toda parte necessário. Onde eu moro (Palouse, estado de Idaho), não há cascavéis. Mas apenas a trinta milhas a sul de nós, começa o país delas (Canadá). Seria tolice andar ao redor do país ali embaixo sem qualquer consideração pelas cobras. A Bíblia nos ensina que a semente da serpente pode aparecer em qualquer lugar, e temos que tomar cuidado. Espiritualmente falando, não há lugar para relaxar e dizer: “Cobras não são possíveis aqui”. Assim, temos que ensinar nossos filhos a serem cuidadosos. 

Porque a educação é o processo de prepará-los para a vida e todas as suas diversas áreas, precisamos mostrar como esta antítese está em vigor em cada matéria - linguagem, história, ciência, matemática e assim por diante. Em toda matéria os homens falam a verdade sobre Deus, e em toda matéria eles mentem. Faz diferença quem escreve o currículo de história - se Moisés ou Jeroboão. “São estes deuses que nos tiraram da terra do Egito” (ver Êxodo 32.4).

Uma busca ativa da antítese repousa sobre outro pressuposto fundamental. Cornelius Van Til certa vez disse que a Bíblia é autoritativa em tudo sobre o que trata, e ela trata sobre tudo. Não há lugar neutro para onde pecadores (ou alunos) possam ir a fim de ausentar-se do que Deus está dizendo. Deus fala em todo tempo e em todo lugar. Sua Palavra não fala diretamente sobre cada matéria. Não diz nada, por exemplo, sobre programação de software e sobre como desmontar um motor à combustão. A Bíblia não é uma enciclopédia exaustiva. Ela é mais como uma chave no canto de um mapa que nos habilita a interpretar tudo nele. Não há uma área da nossa vida para a qual a autoridade das Escrituras não se extenda. Em educação cristã, isso significa que será dada grande ênfase ao uso da Escritura como autoridade para cada aspecto dela. É claro que isso não acontecerá a menos que as pessoas que supervisionam a educação sejam cristãs, embora isso também não seja nenhuma garantia para que aconteça. As Escrituras devem ser tomadas como o alicerce absoluto.

Dito isto, o que significa clássica? Esta questão pode ser dividida em duas, e precisamos lembrar que não é uma questão dissociada. Se dizemos que o aspecto cristão desta educação está aqui (autoritativa sobre tudo) e a parte clássica acolá (sob nenhuma autoridade), caímos na velha cilada da autocontradição. A educação clássica não pode ser entendida à parte de Cristo, pois nada pode estar à parte de Cristo.

Debaixo de Cristo, clássica refere-se a duas coisas. A primeira tem a ver com o conteúdo da educação que os alunos estão recebendo, principalmente nas áreas de literatura e história, mas não ausente em outras matérias. A educação clássica é comumente concebida como um programa de “grandes livros”, e isso não está tão longe da verdade. Para satisfazê-lo, precisamos de um instante para determinar o que significa “grande”. 

A maior parte dos livros que se mostram grandes livros currículos são parte do que tem sido chamado o Cânon Ocidental. Aqueles que se queixam deles o fazem em favor de uma contribuição multicultural mais ampla e eclética e dizem que esses livros são demasiadamente ocidentais, demasiadamente enviesados na direção da civilização ocidental. Mas há uma razão para esse viés, e ela nada tem a ver com a superioridade inata dos europeus e sua prole ao redor do mundo.

O reino de Deus não pode ser confundido com a cultura ocidental, e esta não se constitui o cumprimento do “venha o Teu reino”. Ao mesmo tempo, a história do reino de Deus e a história da cultura ocidental estão tão entrelaçadas que se tornam incompreensíveis se apartadas uma da outra. Considere a tentativa de explicar Carlos Magno sem referência à igreja ou Agostinho sem referência o Império Romano tardio. Na Providência de Deus, o evangelho espalhou-se do oeste e norte da Palestina para a maior parte. A civilização ocidental não é o reino de Deus, mas tornou-se grande por causa dele. Consequentemente, o tempo que leva para aprender e dominar toda a sua literatura e história vale a pena, e isso deveria estar no âmago da educação que proporcionamos para os nossos filhos. Ensiná-los sobre a cultura e herança deles não deveria nos incomodar, e isso não é descrédito para a cultura dos outros. Como tenho dito muitas vezes, não é possível ensinar os filhos a honrar outras culturas ensinando-os a desprezar a sua própria. Filhos que são ensinados a honrar suas mães entenderão por que outras crianças honram as deles.

Mas educação clássica também requer um método pedagógico particular, e este método tem sido chamado o trivium. Trivium é uma palavra latina que se refere a três modos de interseção, e as três estradas que se cruzam aqui são a gramática, a dialética e a retórica. Na formulação de alguns, a dialética é chamada de lógica. Uma geração atrás, a erudita e clássica escritora cristã Dorothy Sayers escreveu um ensaio intitulado “The Lost Tools of Learning” [As ferramentas perdidas da aprendizagem - aqui e aqui]. Seu objetivo era tomar os elementos medievais do trivium e alinhá-los com o que ela tinha observado sobre o desenvolvimento infantil. Ela disse nesse ensaio que estava confiante que ninguém era louco o bastante para tentar o que ela estava sugerindo. Mas decidimos acolhê-la assim mesmo.

A gramática refere-se aos elementos constituintes de cada matéria. Refere-se não apenas à linguagem; toda matéria tem uma gramática. A geografia tem rios e montanhas. A aritmética, tabuadas de adição e subtração. A história, nomes, batalhas e datas. Cada matéria possui uma gramática. Sayers aponta que crianças nos anos elementares estão passando pelo que ela chamou de estágio do papagaio [2]. Elas amam entoar cânticos, memorizar e recitar. Uma vez que gostam mesmo de fazer isso, e farão coisas para memorizar se você não lhas der, por que não ir direto ao ponto? Por que não tê-las agarradas à gramática, se é isso o que elas amam fazer e se é isso o que elas são boas em fazer?

O próximo estágio é a dialética, que se refere às relações organizadas dos vários pedaços de dados dispersos. No estágio da gramática, acumulamos montículos de fatos. No dialético, começamos a separá-los e arranjá-los. Este estágio (que, grosso modo, corresponde aos primeiros anos de ensino médio) é o tempo quando os alunos entram no que Sayers chamou de o estágio atrevido. Eles se tornam um tanto argumentativos. Então, ela reflete, por que não ensiná-los a argumentar? Quando você ensina lógica simbólica formal a alunos da oitava série, por alguma razão eles a devoram. Novamente, o ponto é ser objetivo. Neste estágio, os alunos começam a aprender matemática mais complicada, relações gramaticais em inglês e latim, lógica formal, e assim por diante.

O estágio correspondente com o elemento retórico do trivium foi chamado de o estágio poético por Sayers. Este ocorre durante os anos de ensino médio, e é o tempo quando os alunos tornaram-se naturalmente preocupados em manter as aparências. Novamente, ensinamos com a natureza do aluno, e lhes ensinamos a arte de apresentar-se bem - retórica. Este estágio é onde eles devem fazer cursos de retórica efetiva, juntamente com cursos de apologética e todos os seus cursos de literatura.

Pode ser admitido agora que a primeira geração de educadores clássicos e cristãos precisaram se virar com o que tinham. Mas felizmente, para aqueles que estão começando exatamente agora esta estimulante tarefa, existem pilhas e pilhas de materiais para ajudar o clássico e homeschooler cristão a começar. Esboçamos a grande teoria, que é semelhante a olhar para a maravilhosa figura do triciclo na tampa da caixa. Mas agora chega a hora da montagem, e você pode ouvir o tilintar assustador das porcas e parafusos dentro da caixa. Mas não se preocupe - há instruções claras e convincentes dentro dela (e não estão em japonês), e elas estão imediatamente disponíveis em organizações como a Association of Classical Christian School (ACCS), Logos School, Canon Press, e Veritas Press. 
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[1] Capítulo 2 do livro “Homeschooling Methods: Seasoned Advices on Learning Styles”. Editores gerais: Paul e Gena Suarez. B&H Publishing, 2006. p. 6-12, edição para Kindle. 
[2] “Poll-parrot stage”.

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Tradução: Leonardo Bruno Galdino.
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