Pois aquele a quem estas coisas não estão presentes é cego, vendo só o que está perto, esquecido da purificação dos seus pecados de outrora.
(Almeida Revista e Atualizada).
[Introdução]
Quando comentei com um amigo que analisaria mais uma passagem de 2 Pedro nessa minha série sobre os supostos textos “arminianos” da Bíblia, ele rapidamente exclamou: “Mais uma?! Desse jeito você vai deixar a impressão de que Pedro era mesmo arminiano”! É óbvio que ele quis apenas fazer uma brincadeira, visto que também é reformado. Na realidade eu não pretendia, de início, analisar o texto que ora estou considerando. Minha intenção inicial era a de analisar, em 2 Pedro, apenas os dois textos que já analisei. Mas, lendo a carta novamente, me deparei com este de agora. E fiquei sobremodo inquieto. Comentando com outro amigo sobre essa mesma questão, ele me disse que nunca tinha visto os arminianos usarem esse texto contra os calvinistas. Como eu também nunca vi, fiquei perguntando para mim mesmo se eu não estaria dando um tiro no próprio pé ao mostrar aos arminianos algo que nem eles mesmos tinham visto. E a conclusão a que cheguei foi a de que é justo admitirmos quando estamos em dificuldades diante de um texto de difícil interpretação. Todavia, o que tenho sempre em mente é que “a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35), muito menos contradizer-se. Isso é o que deve nortear toda a nossa hermenêutica e exegese, e nos motivar a ir em busca de respostas para questões tão aparentemente insolúveis como esta.
Como sempre proponho nas minhas abordagens, vamos analisar o referido versículo por partes e dentro do seu contexto, para que possamos obter uma compreensão mais consistente e adequada do seu real significado. Isso evitará que incorramos em interpretações errôneas do texto sagrado.
Só gostaria de chamar a atenção dos leitores para algo que julgo ser essencial, antes de adentrarmos na análise do texto propriamente dito. Penso que a chave hermenêutica para a compreensão de toda a segunda carta de Pedro esteja no seu primeiro versículo, onde o apóstolo endereça a sua carta “aos que conosco obtiveram fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”. O que é que a justificação pela fé está fazendo num contexto onde o foco de Pedro é alertar os crentes sobre a falsa doutrina escatológica e ética dos falsos mestres? Resposta: somente os que creem na perfeita justiça de Cristo[1] é que receberão de Deus “todas as coisas que conduzem à vida [eterna] e à piedade” (2Pe 1.3) e todas as suas “preciosas e mui grandes promessas”, para que por elas os mesmos possam se tornar “co-participantes da natureza divina” e livrar-se da “corrupção das paixões que há no mundo” (2Pe 1.4). Mais uma vez repito: Pedro está escrevendo para a igreja. Isto posto, vamos ao texto de 2Pe 1.9.
[Análise]
Em primeiro lugar, Pedro fala sobre certas “coisas” que não estão presentes na vida dos falsos crentes (“Pois aquele a quem estas coisas não estão presentes”). Que “coisas” são essas? Vejamos 2Pe 1.3-8:
- 3 Visto como, pelo seu divino poder, nos tem sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude,
- 4 pelas quais nos tem sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos das paixões que há no mundo,
- 5 por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude o conhecimento;
- 6 com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio a perseverança; com a perseverança a piedade;
- 7 com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor.
- 8 Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que não sejais inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo.
Já no versículo 3 Pedro nos fala algo interessantíssimo e crucial. Ele diz que todas as coisas que nos conduzem à vida [eterna] e à piedade nos foram doadas. Fé, virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade, fraternidade e amor são coisas que nós nunca conseguiríamos produzir sozinhos – é dom de Deus. E esse dom visa exatamente a que não sejamos “inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 8). Ora, se tais coisas não estavam presentes na vida dos falsos cristãos, é porque eles nunca haviam sido agraciados por Deus da mesma maneira especial como os verdadeiros crentes o foram. Por este motivo é que eles eram inertes e infrutíferos. Tais dons de Deus são o indicador infalível que distingue a verdadeira religião de uma mera profissão de fé, aquela “fé morta” da qual Tiago fala (Tg 2.14-26). Charles Spurgeon falou sobre isso de forma magistral, quando disse que “a profissão de fé sem a graça divina é a pompa funerária de uma alma morta”.
Para reforçar mais ainda seu argumento, em segundo lugar Pedro diz que quem não tem nenhuma das qualidades supracitadas é “cego, vendo só o que está perto”. A palavra grega que ele usa para cego é a palavra τυφλος (typhlos), que também é usada no NT com seu sentido metafórico de “cegueira mental ou espiritual” (cf. Mt 15.14; 2Co 4.4). Sendo assim, não há contradição alguma no fato de Pedro dizer que os tais são cegos e ainda assim enxergam apenas o que está perto deles. Minha opinião é que aqui Pedro está apenas sendo irônico. Basta lembrarmos que uma das coisas que os falsos mestres negavam era exatamente o retorno triunfal de Cristo, que eles julgavam deveras demorado, para não dizer ilusório (2Pe 3.4,9). E o que Pedro está querendo dizer é que qualquer um que tenha sua visão limitada a esta vida terrena sofre de cegueira espiritual. Em outras palavras, é como se ele quisesse dizer: “Vejam o quão cegos eles são! Pois não são capazes de enxergar algo que ainda está ‘longe’ do alcance de suas medíocres visões”. Uma santa ironia! [Em minha análise de 2 Pedro 2.1, mostrei que alguns adjetivos que Pedro usa para qualificar os falsos crentes indicam que os tais jamais foram salvos. Por isso, não pretendo me estender mais quanto a este particular].
Mas, então por que Pedro falou que os falsos crentes foram um dia purificados dos seus pecados de outrora? Será que existe um outro sentido para a palavra “purificação”?
Bem. A esta última pergunta eu respondo que “sim”, que Pedro usou a palavra “purificação” com um outro sentido diferente daquele que comumente extraímos quando fazemos uma leitura superficial do texto, o que faz com que ele se pareça mesmo “arminiano”. Então, a que Pedro estava se referindo quando falou da “purificação” dos antigos pecados dos falsos crentes? Minha resposta é: ao batismo. E vou tentar explicar o porquê dela.
Pra ser sincero, eu não pude consultar a opinião de outros comentaristas sobre a passagem em questão porque não possuo nenhum comentário sobre a mesma (nem sobre as cartas de Pedro). Eu deduzi a opinião que ora sustento por um breve estudo que fiz do texto grego (este, pelo menos, eu tenho). Mas, para a minha felicidade (e surpresa, também), descobri que essa opinião é sustentada também por Simon Kistemaker, famoso comentarista bíblico reformado e sucessor do erudito William Hendriksen. Eis o seu parecer sobre o texto que estamos considerando:
As palavras de Pedro, purificada de seus pecados passados, dizem respeito ao batismo. Estão de acordo com o comentário de Paulo sobre a igreja: “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra” (Ef 5.25,26; ver também 1 Pe 3.21). O batismo é o símbolo dessa purificação, e a morte sacrificial de Jesus na cruz é uma realidade.
Com o termo passados, Pedro indica alguém que vivia em pecado, converteu-se e foi batizado. Talvez essa pessoa não tenha percebido a importância dessa purificação e, portanto, não tenha rompido com seu passado, mas misturado sua vida mundana com o viver cristão. Talvez ela tenha gradualmente se separado de seu compromisso com Cristo ao esquecer-se da importância de seu batismo e ao voltar para sua antiga vida pecaminosa[2].
Infelizmente, Kistemaker não foi tão profundo em sua análise quanto eu esperava que ele fosse, mas também não pretendo, aqui, “remendar” o trabalho de tão respeitado e competente teólogo. Apenas desejo fazer mais algumas observações que julgo relevantes à questão.
A palavra que Pedro usa para “purificação”, no texto que estamos considerando, é a palavra grega καθαρισμου (katharismou), derivada de καθαρος (katharos), termo que significa, literalmente, “limpo”; “puro”. Jesus usou esta palavra nas suas bem-aventuranças, quando quis se referir aos “limpos” de coração, que verão a Deus (Mt 5.8 – cf. Sl 24.4). Fiz questão de expor isso para mostar que em alguns casos a palavra katharos era usada no sentido de uma pureza espiritual, e não apenas física (Ap 15.6) ou ritual (Lc 17.14; Rm 14.20; Hb 1.3)[3]. Penso que não seria honesto de minha parte esconder essa verdade, principalmente daqueles que hão de discordar do ponto de vista reformado que defendo. Entretanto, meu argumento é que Pedro não empregou a palavra katharismou no seu sentido de purificação espiritual, e minhas razões para tal posicionamento são bem simples. A primeira é que, se Pedro quisesse mesmo se referir a uma verdadeira purificação espiritual, então não faltariam para os falsos crentes certas “coisas” como fé, virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade, fraternidade e amor, coisas essas que o próprio Pedro diz que eram completamente ausentes nos tais (2Pe 1.3-9). Minha segunda razão, semelhante à anterior, é que, se os tais tivessem sido mesmo purificados espiritualmente, então Pedro não deveria tê-los chamado de “cegos”, já que tal “purificação” deveria ter sido integral. Talvez ele devesse ter usado termos mais amenos, como “fracos”, “imaturos” ou coisas do tipo. Essa proposição é simplesmente absurda! Pedro não falhou em tachar os falsos crentes de cegos, nem de dizer que Deus não doou a eles as coisas que doou aos verdadeiros crentes. Pedro foi inequivocamente exato!
Tendo chegado à conclusão[4] de que Pedro não estava se referindo a uma purificação espiritual, precisamos fundamentar melhor nossos argumentos em prol de uma purificação ritual – o batismo, nesse caso. Mais uma vez, apelarei para o texto grego e para um princípio básico da hermenêutica (de uma boa hermenêutica), a saber, o de averiguar o uso que o mesmo autor faz de um determinado termo em outras passagens de sua lavra. Mas nesse caso eu não me referirei ao termo grego katharismou, e sim à palavra “purificação”.
Se não for determinante, é no mínimo significativo o fato de que a palavra que Pedro usa para “purificar”, em sua primeira carta, não tenha sido a palavra katharismos, e sim a palavra hegnikótes, que é oriunda do verbo αγνιζω (hagnizo), que também significa “purificar”. Hagnizo (e seus cognatos) é o termo que os autores do NT geralmente preferem quando o assunto é purificação moral e espiritual. Antes de dar mais explicações, vejamos o texto em 1 Pedro:
- 1Pe 1.22: “Tendo purificado [hegnikótes] a vossa alma, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente”.
É interessante notar que essa palavra (hegnikótes) e seus cognatos (hagnizo e hagnismos) são usados apenas duas vezes, em todo o NT, com o sentido próprio de “purificação ritual” (em Jo 11.55 e At 21.26). No restante das ocorrências, ela assume o sentido de uma purificação moral e espiritual (cf. Tg 4.8; 1Jo 3.3). Ora, se Pedro quis mesmo dizer (em 2Pe 1.9) que os falsos crentes tiveram suas almas moral e espiritualmente purificadas, por que será que ele não usou o mesmo termo que ele havia usado em sua primeira carta? Resposta: porque ele não estava se referindo ao mesmo tipo de purificação, nem ao mesmo tipo de pessoas.
Isso me levar a crer que Pedro estava se referindo a uma “purificação de superfície”, e não de natureza, e um próprio exemplo que ele usa na mesma carta (2Pe) confere com essa perspectiva. Numa quase evidente referência ao batismo (em águas), Pedro compara os falsos crentes a uma porca que volta a revolver-se na lama depois de ter sido lavada (2Pe 2.22). Apesar de eu já ter dissertado um pouco sobre esse texto em outra postagem, penso que seja oportuno fazê-lo novamente aqui. Note que Pedro diz que o banho não mudou em nada a natureza da porca, pois ela voltou para a lama logo na primeira oportunidade. Ele aplica esse adágio popular aos falsos crentes. Mesmo que se batizem, nunca serão purificados de fato; mesmo que se batizem, nunca poderão obter “fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 1.1); mesmo que se batizem, nunca poderão confirmar sua “vocação e eleição” (2Pe 1.10), pois não foram chamados nem eleitos; mesmo que se batizem, nunca poderão conhecer completamente aquele que chamou os eleitos para a sua própria glória e virtude (2Pe 1.3). Ao contrário dos verdadeiros crentes, a entrada para o reino eterno do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo não será amplamente suprida aos meros professos, visto que foi no próprio Cristo que eles tropeçaram (cf. 2Pe 1.10-11). E ainda que os tais se esperneiem naquele Dia, dizendo “Senhor, mas eu fui batizado nas águas”, eles terão que ouvir a dura realidade da boca do próprio Cristo que eles rejeitaram: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticam a iniquidade” (Mt 7.22-23).
[Conclusão]
A profissão de fé torna-se algo puramente vazio se não for acompanhada de genuíno e constante arrependimento. Os falsos crentes, ainda que professem publicamente a sua fé por meio do batismo, suas próprias condutas hão de denunciar que a fé que eles possuem é morta. Nesse caso, é mais do que apropriado dizer que os tais não passam de “sepulcros caiados” (Mt 23.27,28).
Soli Deo Gloria!
Publicado originalmente no blog 5 Calvinistas.
[1] Embora a partícula εν também possa ser traduzida como “pela”, penso que a tradução mais coerente seja mesmo “na justiça”, visto que Pedro está mais preocupado em expor o objeto da nossa fé do que em expor o meio pelo qual viemos a crer. Fé “em que”, e não “por meio de que”.
[2] KISTEMAKER, Simon. Epístolas de Pedro e de Judas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p.340-341. Obrigado, Helder, por ter se dado ao trabalho de digitar o comentário do Kistemaker sobre essa passagem e mandar pra mim por e-mail.
[3] Embora devamos admitir que a linguagem que o salmista usa no Sl 24.4 é uma metáfora tirada dos rituais levíticos (cf. Lv 11-15).
[4] O método hermenêutico que geralmente uso nesses casos é o da eliminação das proposições falsas (semelhante àquele que usamos para responder às questões objetivas nas provas de vestibular, concursos e etc.). Eliminando-se as proposições improváveis (falsas), sobrará apenas uma única e provável (verdadeira) resposta.
2 comentários:
Olá Leonardo, tudo na paz?
Muito boa as análises, parabéns!
Gostaria de saber se o seu livro já chegou em suas mãos. O mesmo foi despachado há quase duas semanas.
Espero que tenha chegado.
Grande abraço, em Cristo!
Ruy,
Obrigado por ter apreciado o texto. ;)
Quanto ao livro, ele já chegou, sim. Semana passada. Desculpe por não ter te avisado.
Abraços!
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