Graça e paz, irmãos!
Continuando nossa exposição no Credo Apostólico, hoje vamos tentar resumir quase dois mil anos de história em cerca de quarenta minutos. Refiro-me à doutrina da União das Duas Naturezas do Redentor, que ao longo dos séculos tem sido motivo de muita controvérsia teológica no seio da Igreja. Tal doutrina encontra-se exposta no terceiro artigo do Credo, sobre o qual vamos dissertar agora:
“O qual foi concebido por obra do Espírito Santo; nasceu da virgem Maria”.
Para tal, vamos abrir nossas bíblias no Evangelho Segundo Mateus, no capítulo 1, dos versos 18 a 25, onde temos um relato do nascimento virginal de Jesus, que pode perfeitamente ser encarado com um relato histórico da União das Duas Naturezas do Redentor:
- 18Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada com José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida pelo Espírito Santo.
- 19Mas José, seu esposo, sendo justo e não a querendo infamar, resolveu deixá-la secretamente.
- 20Enquanto ponderava nestas coisas, eis que lhe apareceu, em sonho, um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, pois o que nela foi gerado é do Espírito Santo.
- 21Ela dará à luz um filho e lhes porás o nome Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles.
- 22Ora, tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta:
- 23Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco).
- 24Despertando José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu sua mulher.
- 25Contudo, não a conheceu, enquanto ela não deu à luz um filho; e pôs o nome de Jesus (Mt 1.18-25).
Vou começar com uma frase do grande reformador João Calvino: “Divindade e humanidade são os dois requisitos que devemos procurar em Cristo, caso pretendamos encontrar nele a salvação”. Quando nos propomos falar sobre a doutrina da União das Duas Naturezas do Redentor numa só Pessoa, estamos simplesmente tratando sobre um dos pontos centrais da fé cristã. Infelizmente, essa verdade foi por muito tempo e por muitas pessoas negligenciada, questionada, negada e deturpada. Os ebionitas, discípulos de Cerinto (gnóstico docetista), negavam a divindade de Jesus. Eles diziam que o elemento divino (o “cristo”) desceu sobre Jesus por ocasião do seu batismo, mas o deixou na crucificação. Ário negava a filiação eterna de Cristo. Foi combatido por Atanásio e condenado no Credo Niceno (325 A.D). Os eutiquianos, por sua vez, negavam a humanidade de Jesus, e ficavam só com o Jesus divino. Foram condenados no Concílio de Calcedônia (451 A.D).
A Natureza Divina de Cristo
Duas implicações sobre esta doutrina (sugestão de Wayne Grudem):
1. Ela mostra que em última instância a salvação vem do Senhor (Jn 2.9). O milagre da concepção de Cristo deve-se unicamente a Deus. E, visto que Cristo é o nosso Salvador, nossa salvação logicamente também deve-se a Deus.
- Interseções com o texto de Mateus: O anjo falou pra José que a concepção de Maria fo algo de que veio “de fora”, a saber, do Espírito Santo.
2. “O nascimento virginal tornou possível a união da plena divindade com a plena humanidade em uma só pessoa [União hipostática]. Esse foi o meio que Deus usou para enviar seu Filho (Jo 3.16; Gl 4.4) ao mundo como homem. Se pensarmos por um momento em outros modos possíveis pelos quais Cristo poderia ter vindo ao mundo, nenhum deles seria claramente a união entre divindade e humanidade em uma pessoa” (Wayne Grudem).
- Interseções com o texto de Mateus: A união hipostática se deu “na plenitude do tempo” (Gl 4.4). Mateus diz que de Abraão a Davi contaram-se catorze gerações; de Davi ao exílio babilônico, catorze; e do exílio a Jesus, catorze (Mt 1.17). Os judeus poderiam estar pensando qual seria o “grande próximo evento” depois do cativeiro babilônico. A resposta: o evento “Deus conosco”. Aleluia!
A Natureza Humana de Cristo
Cinco verdades acerca da natureza humana de Cristo (sugestão de Ronald Hanko):
- Ela era real – O docetismo pregava que o corpo de Jesus não era real, de carne e osso, mas uma mera aparência. O apóstolo João, em suas cartas, combateu veementemente essa heresia: “Todo espírito que confessa que Jesus veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo” (1 Jo 4.2-3); “Porque muitos enganadores tem saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (2 Jo 7).
- Ela era completa – Cristo não encarnou apenas em “alguns aspectos” de nossa natureza, mas em todos eles. Ele tinha que tomar cada parte dela, pois toda ela precisava ser redimida – nosso alma, mente, vontade e coração.
- Ela era sem pecado – Uma das coisas que Davi disse e que Jesus jamais diria era que “nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu a minha mãe” (Sl 51.5). Isto porque Jesus, apesar de também ter nascido do ventre de uma mulher, não foi concebido da mesma maneira que Davi (relacionamento sexual), mas pelo Espírito Santo. Ele não tinha nem pecado original nem pecado real, o que implica dizer que Ele não somente não pecou, mas também que Ele não poderia pecar. Ele “não conheceu pecado”, disse Paulo (2 Co 5.21); “foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” e “santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores”, diz o autor aos Hebreus (Hb 4.15; 7.26).
- Ela era fraca – Nenhuma das verdades acima implica que Jesus era isento de fraquezas. Por ter se tornado carne, ele estava sujeito a todos os males resultantes do pecado, embora não ao próprio pecado. Ele teve fome, dor, tristeza, sofrimento, fraqueza e até mesmo morte. Isaías referiu-se a Jesus como um “homem de dores e que sabe o que é padecer”. Ainda conforme o profeta, seus sofrimentos deveriam ser explicados assim: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores tomou sobre si... Ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades”. Ou seja, “o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele” (Is 53.3-5).
- Ela era oriunda da linha do Pacto (Aliança) – Não obstante o fato de Deus ter dito à serpente que o “descendente” da mulher esmagaria sua cabeça (Gn 3.15), isso não quer dizer que Cristo descenderia de qualquer um dos filhos de Adão, ou que poderia haver uma “quebra” de continuidade em sua (de Cristo) genealogia. Cristo deveria necessariamente descender de Abraão, Isaque, Jacó, Judá e Davi. Isso pode ser atestado na genealogia traçada por Lucas, que vai de Cristo a Adão (Lc 3.23-38). Mateus, por outro lado, começa com Abraão (Mt 1.1-17). Cristo era mesmo o “Filho de Davi” profetizado pelos antigos (2Sm 7; Is 11.1-2; Sl 89. cf. Mt 1.1; Lc 1.32; Rm 1.3,4). Isso serve para remover toda e qualquer dúvida que porventura venhamos a nutrir de ser Jesus o Messias que fora anteriormente prometido. Várias tentativas foram feitas ao longo da História humana para impedir o evento “Deus conosco”, mas todas elas fracassaram (cf. Mt 2.13-23).
- Interseções com o texto de Mateus: O interessante no evangelho de Mateus é que ele faz questão de frisar que as profecias deveriam se cumprir. O nascimento de Cristo foi virginal “para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel” (Mt 1.22,23). Cristo tinha que nascer em Belém da Judéia, não em qualquer outro lugar, “porque assim está escrito por intermédio do profeta: E tu, Belém, da terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as principais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o meu povo, Israel” (Mt 2.5,6). Maria e José fugiram com Jesus para o Egito “para que se cumprisse o que foi dito pelo Senhor, por intermédio do profeta: Do Egito chamei meu Filho” (Mt 2.15). Herodes mandou matar todos os meninos menores de dois anos de idade que moravam em Belém e arredores para que se cumprisse “o que fora dito por intermédio do profeta Jeremias: Ouviu-se um grande clamor em Rama, pranto [choro] e grande lamento; era Raquel chorando por seus filhos e inconsolável porque não mais existem” (Mt 2.16-18). E depois que Herodes enfim morreu, José e Maria partiram para morar com Jesus numa cidade chamada Nazaré, “para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno” (Mt 2.23).
Aplicação com ênfase na Redenção Particular (“Expiação Limitada”)
Por que Cristo nasceu? Por que “o Verbo se fez carne e habitou [tabernaculou] entre nós”? Paulo responde: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores” (1 Tm 1.15). Sua morte não foi para tornar a salvação possível, mas para torná-la real e eficaz. Mas para quais pecadores? Todos? O anjo que apareceu a José responde: “Ela dará à luz um filho e lhes porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21). Os próprios sacerdotes e escribas, após terem sido perguntado por Herodes onde nasceria o Cristo, responderam com a profecia de Miqueias (Mq 5.2): “E tu, Belém, da terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as principais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o meu povo, Israel” (Mt 2.6). A encarnação do Verbo, a qual Paulo chama de “o grande mistério da piedade” (1 Tm 3.16), só encontra seu sentido quando olhamos para aquilo que Deus fez na cruz por intermédio da Pessoa do Seu Unigênito: reconciliar pecadores consigo mesmo, dentre os quais estamos nós, “aos quais Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste mistério entre os gentios, isto é, Cristo em vós [em nós!], esperança da glória” (Cl 1.27). Dizer que as duas naturezas do Redentor convergem para a grande verdade de uma expiação particular não é, como alguns podem pensar, um “delírio calvinista”, e sim uma grande verdade que as Escrituras nos ensinam.
Solus Chritus! Soli Deo Gloria!
Leonardo Bruno Galdino.
Pregado na I Igreja Presbiteriana de Santarém/PA, em 24/10/2010.
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