Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento (Almeida Revista e Atualizada).
[Introdução]
O texto supracitado é largamente usado pelos arminianos como uma prova irrefutável de que Cristo morreu por toda a humanidade. O raciocínio é mais ou menos o que segue: “Como é que Jesus veio morrer por alguns, se o próprio Deus deseja que todos se salvem”? É interessante o fato de que até mesmo um grande teólogo reformado como John Murray endosse exatamente o parecer arminiano. Veja o que ele diz sobre esse mesmo texto:
Deus não deseja que nenhum homem pereça. Seu desejo, antes, é que todos entrem para a vida eterna chegando ao arrependimento. A linguagem nessa parte do versículo é tão absoluta que é altamente anormal encarar Pedro como querendo dizer meramente que Deus não deseja que nenhum crente pereça… A linguagem das cláusulas, então, mais do que naturalmente refere-se à humanidade como um todo… Ela não tem em vista os homens como eleitos ou como réprobos[1].
Sinceramente, não sei porque cargas d’água um teólogo do calibre do John Murray, autor de obras tão consagradas no meio reformado, como o Comentário de Romanos e Redenção – Consumada e Aplicada, tenha errado tão crassamente como ele o fez aqui. Mas isso não me interessa. O que interessa, de fato, é analisar se tanto ele quanto os arminianos estão certos em suas interpretações.
[Análise]
Se o contexto da referida passagem for cuidadosamente observado, a interpretação arminiana não tem como se manter de pé. Para não sermos desnecessariamente longos em nossa exposição, vamos nos deter apenas do versículo 8 em diante, em busca de algumas provas contra a interpretação que os arminianos conferem ao Texto Sagrado.
A primeira prova contra a interpretação arminiana é que Pedro está se dirigindo aos crentes (os “amados”). Senão, vejamos:
- 2Pe 2.8: “Há, todavia, amados, uma coisa que não deveis esquecer: que para o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia”.
Haveria uma chance de escape para a interpretação arminiana se Pedro tivesse como objetivo, aqui, corrigir os falsos mestres, dirigindo-se especialmente aos tais. Mas não é isso que a carta como um todo revela. Pedro está escrevendo à igreja, preocupando-se em trazer à lembrança desta as “palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos apóstolos” (2Pe 3.2 – cf. 1.12-14). Seu objetivo é alertá-la contra o ensino dos falsos mestres, que negavam a promessa de Cristo quanto ao seu retorno triunfal (também conhecido como “parousia”). Compreender isto, que é aos crentes que Pedro se dirige, é fundamental para a intepretação da passagem em questão.
Isto posto, chegamos à nossa segunda prova de que a interpretação arminiana está equivocada. Pedro começa o versículo 9 dizendo que “alguns” julgavam que a parousia era uma farsa, haja vista que a promessa de Cristo quanto a ela estava “demorando” para ser cumprida. Pedro, então, explica aos crentes o porquê de Cristo ainda não ter voltado: “ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. Não há dificuldade alguma no texto. Ele é mais do que claro. As palavras que sublinhei só podem se referir aos crentes. Deus é longânimo somente para aqueles a quem Ele não fará perecer. E quem é o único povo que não perecerá? Resposta: a Igreja. Essa verdade é reforçada pelo uso que Pedro faz da palavra grega boulomenos (do verbo boulomai – lit. “ter vontade”, “intentar”) para o “querer” de Deus (“não querendo que nenhum pereça”). Geralmente, essa palavra é usada para designar uma “determinação incontestável” e deliberada da parte de Deus[2].
Mas, suponhamos que os arminianos estejam certos, e que o “todos” a quem Pedro se refere seja mesmo a humanidade inteira. A que conclusões chegaríamos?
- Se o retorno tão esperado de Cristo depende mesmo do arrependimento de toda a humanidade, então os falsos mestres contemporâneos de Pedro estão cobertos de razão, pois Jesus, nesse caso, jamais voltará;
- Se não é bem esse o caso, então os propósitos de Deus foram frustrados (contrariando Jó 42.2), visto que nem toda a humanidade se arrependerá;
- Se também não é esse o caso, então das duas uma: ou os hereges estão certos (o que faria de Jesus um mentiroso, de fato), ou Deus falhou na sua empreitada redentiva. ABRE PARÊNTESE. Este terceiro ponto era para soar redundante, mesmo. FECHA PARÊNTESE.
Como podemos perceber, as próprias premissas do pensamento arminiano para o caso que estamos tratando, se levadas às suas últimas implicações, excluem-se mutuamente. E as conclusões que delas podemos tirar são absurdas!
Somos levados, então, à terceira prova do erro arminiano. Se o versículo 9 ainda está obscuro no que diz respeito a que tipo de pessoa é alvo da longanimidade de Deus para fins salvíficos, então vejamos o que o próprio Pedro diz no versículo 15:
- 2Pe 3.15: “E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada”.
Mais uma vez, haveria outra chance remota de escape para os arminianos se esse versículo não estivesse onde está. Mas ele está aí – resoluto, firme, inconteste! E ele está dizendo que nossa salvação só é possível porque Deus é longânimo. E para agravar ainda mais a situação (dos arminianos, é lógico), Pedro resolve fazer referências a Paulo. O texto paulino mais provável que Pedro tem em mente é o de Romanos 2.4. Vejamos o que diz:
- Rm 2.4: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento”?
Vejam só! Paulo está dizendo que somos conduzidos ao arrependimento por causa da bondade de Deus. Isso é maravilhoso! E Pedro não está fazendo aqui uma citação despropositada, como se ele estivesse apenas querendo conferir autoridade ao seu parecer apelando para Paulo. Nada disso. Pedro está simplesmente corroborando uma verdade já anunciada anteriormente pelo apóstolo aos gentios, a saber, que somente chegarão ao arrependimento aqueles a quem Deus dispensar a sua longanimidade.
Pode ser que aqui os arminianos se levantem e vociferem: “se for assim, então há controvérsias”! Eles poderão alegar um outro possível texto paulino, na mesma carta, que também fala da longanimidade de Deus. Vejamos qual:
- Rm 9.22: “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição”.
Bem. Não consigo imaginar qual seria exatamente o argumento dos arminianos. Se eles apelarem para o fato de que Deus suporta com muita longanimidade “os vasos de ira”, ou seja, os incrédulos, então eles também terão que admitir que os tais foram “preparados para a perdição” (réprobos), enquanto que outros foram preparados para a glória (os eleitos – Rm 9.23). Sinceramente, se eu fosse arminiano, jamais apelaria para um texto desses. A não ser que eu estivesse disposto a admitir que realmente “o Senhor fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso, para o dia da calamindade” (Pv 16.4). Mas isso seria demais para quem não aceita a absoluta e irrestrita Soberania de Deus. Tudo isso mostra que não há escapatória para quem deseja contestar a Verdade. Ela “encurrala”, mesmo.
[Conclusão]
Diante de tudo o que vimos, não me resta outra alternativa, senão a de concluir “doxologicamente” (valeu por esse insight, Roberto Vargas!):
“Obrigado, Senhor, pela tua imensa paciência dispensada a nós, pobres e miseráveis pecadores. Sem ela não nos restaria tempo para nos arrependermos de ter ofendido o teu Santo Nome. Dessa forma, podemos dizer, com absoluta certeza, que fomos salvos pela Tua longanimidade. Aleluia”!
Soli Deo Gloria!
Publicado originalmente no blog 5 Calvinistas.
[1] The Free Offer of the Gospel, Murray and Stonehouse ,no city, no publisher, no date, 26, 27. Citado no site Monergismo (clique aqui).
[2] Verbete “vontade”, do Novo Dicionário Internacional de Teologia do NT (Ed. Vida Nova, pág. 2677).
8 comentários:
Caro Leonardo,
Mais um belo texto da sua lavra. De fato os arminianos podem se amparar na subjetividade de algumas passagens, como a referenciada (2 Pedro 3:9), todavia, não conseguem jamais se safar de Romanos 9. Não há saída. A passagem é literal, o entendimento é cristalino: Deus fez alguns para a perdição (vasos de ira) e outros para a salvação (vasos de honra). O que ratifica, reforça e corrobora as doutrinas da graça, especialmente a eleição (sem qualquer interferência humana).
Mais uma vez repito: um dia, quando ainda era influenciado pelo pensamento arminiano, sofri o impacto transformador de Romanos 9, e então pude enxergar Deus em toda a Sua glória!
Bendito seja o nome do Deus soberano, o Todo Poderoso, que não depende em nada das suas pequenas e miseráveis criaturas para fazer cumprir inteiramente os Seus santos desígnios.
Em Cristo.
Ricardo
Ricardo,
É isso aí, mesmo! Romanos 9 também foi crucial para mim. Ele não deixa a mínima sombra de dúvida de que uns foram preparados para a perdição enquanto outros foram preparados para a salvação. Essa passagem desmancha por completo qualquer objeção à doutrina da predestinação.
Abraços!
Excelente e esclarecedora postagem. Para bens pelo trabalho no blog. Estou só começando como blogueiro e seu blog me ajuda bastante.
Tudo de bom!
Presb. Fábio ("Filósofo Calvinista"),
Obrigado pela visita a este log e por ter apreciado os textos. Espero que tudo o que façamos aqui possa continuar sendo edificante para todos aqueles que estão interessados em manejar bem a Palavra da Verdade (2Tm 2.15).
Grande abraço!
Obs: Em dezembro estarei em Recife. Nos encontraremos na IPB do Ibura, ok?
Essa série tá muito boa, Leonardo! Se ela tem dado trabalho ao irmão, não pense em parar. Persista pelo que ela faz: defender o evangelho da graça!
Um certo teólogo disse que os arminianos são "os nossos irmão errados". Infelizmente eu não me lembro do autor!
Um abraço, irmão!
Danilo,
Obrigado pelas palavras de incentivo.
De fato, essa série tem me dado um trabalho e tanto! Mas não penso em desistir dela, não. Também não pretendo analisar absolutamente todos os versículos que os arminianos usam para refutar as doutrinas da Graça. Se o que eles fazem é lançar mão do recurso da "seleção de amostra" no que tange aos versículos que mais interessam pra eles, eu farei uma seleção da seleção deles (kkk!).
Gostei dessa frase desse teólogo aí!
Grande abraço, irmão!
P.S: A propósito, eu não desisti da série "A Verdade sobre a Mentira", onde o próximo post seria sobre a influência do gnosticismo na espiritualidade contemporânea. É que agora eu tenho dois blogs pra cuidar! ;)
Mas a qualquer momento o texto pode sair! É só aguardar.
Texto excelente, bastante esclarecedor. Sou novo no pensamento reformado (ex-arminiano) e blogs como este auxiliam o entendimento da soberania de Deus em nossas vidas.
Um abraço, e continue postando...
Eric.
Eric,
Obrigado por sua visita a este blog.
Minha esperança é que os textos aqui postados possam ser edificantes para pessoas como você, interesadas em aprender mais sobre a teologia reformada. Continue firme na fé que de uma vez opr todas foi entregue aos santos (Jd 3). Estaremos aqui para ajudá-lo no que for preciso.
Um grande abraço!
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